RELATO DE CASO


SÍNDROME DE MUIR-TORRE: RELATO DE CASO

BRUNO MELLO RODRIGUES DOS SANTOS
SÉRGIO ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO
DANIEL FONTES
JOÃO CARLOS CISNEIROS GUEDES DE ANDRADE JÚNIOR
DIEGO CORRÊA DE ANDRADE
ANTÔNIO LACERDA FILHO- TSBCP


SANTOS BMR, CONCEIÇÃO SA, FONTES D, ANDRADE JUNIOR JCCG, ANDRADE DC, LACERDA FILHO A; Síndrome de Muir-Torre - relato de caso. Rev Bras Coloproct, 2002;22(4): 260-263

Resumo: A associação de neoplasias de glândulas sebáceas e neoplasias viscerais múltiplas é característica da Síndrome de Muir-Torre. O objetivo deste estudo é apresentar o caso de paciente com múltiplos tumores de glândulas sebáceas associados a pólipo colônico, bem como discutir aspectos da doença. A associação de tumores cutâneos com pólipo adenomatoso do cólon e a história familiar de tumores viscerais foi diagnosticada em paciente de 55 anos inicialmente submetido à ressecção de lesões nodulares cutâneas. O resultado anatomopatológico evidenciou adenomas sebáceos, o que motivou a pesquisa de neoplasias viscerais, sendo que a colonoscopia mostrou lesão de 13 mm no ceco, cuja biópsia revelou adenoma túbulo-viloso. O paciente evoluiu com novas lesões de pele, que foram ressecadas sistematicamente até perfazerem um total de dez. Todas elas foram estudadas, confirmando neoplasias de glândulas sebáceas. Os exames realizados não detectaram outros tumores viscerais. A história familiar de neoplasias deste paciente inclui uma filha com rabdomiossarcoma retroperitoneal, a mãe com neoplasia de pulmão e uma irmã com leucemia. O achado de neoplasias de glândulas sebáceas deve levar à suspeita da Síndrome de Muir-Torre, devendo sempre ser seguida pela pesquisa de neoplasias viscerais.

Unitermos: Pólipo colônico, neoplasia sebácea, Síndrome de Muir-Torre.

INTRODUÇÃO
A associação de tumores de glândula sebácea ou ceratoacantomas e neoplasias viscerais é característica da Síndrome de Muir-Torre, afecção rara, descrita por E. G. Muir e Douglas Torre em 1966 e em 1967, respectivamente. 1, 2, 3, 4. A associação de tumores sebáceos e pólipos adenomatosos do cólon é considerada pela maioria dos autores como parte da síndrome, o que ocorre em mais de 50% dos casos. Tumores de origem urogenital, hematológicos, de mama entre outros também podem ser encontrados, embora os do trato digestivo sejam mais comuns e, via de regra, são colônicos 5, 6, 7 .
    Os tumores surgem em idade mais precoce que o habitual, sendo os tumores colônicos mais freqüentemente proximais e a incidência de lesões sincrônicas e metacrônicas maior que no câncer colorretal esporádico. Em contrapartida, a sobrevida dos pacientes com estes tumores é maior quando comparada a pacientes com câncer colorretal não relacionado à afecção em estágio idêntico da doença 8, 9.
    A Síndrome de Muir-Torre é considerada uma variante do câncer coloretal hereditário não associado a polipose (HNPCC), doença autossômica dominante com penetrância variável 10, 11, 12.

Descrição do Caso
Trata-se de paciente do sexo masculino, 55 anos, leucodérmico, comerciário, que procurou o Ambulatório de Pequenas Cirurgias do Hospital das Clínicas da UFMG pela primeira vez em abril de 2000, com queixa de três lesões nodulares em membro superior direito e abdome, com quatro meses de evolução. Foi submetido à ressecção das lesões e o exame anátomo-patológico mostrou tratar-se de adenomas sebáceos. Alguns meses após, surgiram novas lesões, desta vez em abdome e membro inferior direito. Foi novamente operado e o exame histológico confirmou o diagnóstico de adenomas sebáceos.
    Os nódulos cutâneos ressecados em diferentes ocasiões apresentavam aspectos microscópicos semelhantes. Eram constituídos por lóbulos de glândulas sebáceas rudimentares, onde foram identificadas células basalóides indiferenciadas e células sebáceas maduras. Focos de ceratinização também foram encontrados, representando diferenciação para células do infundíbulo (Figuras 1 e 2).

 

Figura 1 - Lesões nodulares no antebraço direito próximo ao cotovelo, sem sinais inflamatórios.

 

Figura 2 - Adenoma Sebáceo. Lesão de limites bem definidos constituída por lóbulos de glândulas sebáceas rudimentares. Alguns lóbulos maiores apresentam espaços císticos em decorrência da desintegração das células sebáceas maduras.

    O paciente apresentava história de neoplasia maligna em familiares de primeiro grau. A mãe falecera por câncer de pulmão aos 52 anos, não sendo tabagista. A irmã faleceu por leucemia aos 42 anos e a filha teve um rabdomiosarcoma retroperitoneal aos 18 anos, sendo operada e estando sem sinais de recidiva após sete anos de seguimento.
    Diante do achado anatomopatológico e da história familiar, foi submetido a exames de rastreamento para diagnóstico de neoplasias viscerais. Foram realizadas radiografia de tórax, endoscopia digestiva alta, laringoscopia indireta e dosagem de marcadores tumorais (CEA, CA 19-9 e alfa feto proteína), que não mostraram alterações. A colonoscopia evidenciou lesão elevada no ceco, medindo 13 mm, que foi ressecada durante o procedimento. O anátomo-patológico mostrou adenoma túbulo-viloso com sinais de displasias leve e moderada.
    À histopatologia, a lesão polipóide cecal caracterizava-se por projeções digitiformes constituídas por glândulas tubulares irregulares, por vezes dilatadas e revestidas por epitélio colunar com algumas figuras de mitose. O eixo da lesão era formado por tecido conjuntivo fibrovascular com infiltrado inflamatório (Figura-3).

 

Figura 3 - Adenoma colônico. Proliferação do epitélio sobre eixo conjuntivo-fibroso formando estrutura polipóide, com epitélio polarizado está preservada e atipias celulares discretas.

    O paciente já foi submetido a ressecção de dez lesões cutâneas: duas no abdome, três no membro superior direito, quatro no membro superior esquerdo e uma na coxa direita, todas elas mostrando adenoma sebáceo ou epitelioma sebáceo ao exame histopatológico. Segue em controle semestral no ambulatório de Coloproctologia do Hospital das Clínicas da UFMG.

Discussão
Em 1966 e 1967 E. G. Muir 3 e Douglas Torre7, respectiva e independentemente, descreveram casos clínicos de pacientes com neoplasias de glândulas sebáceas associadas a neoplasias viscerais múltiplas, localizadas principalmente no trato gastrointestinal e, mais freqüentemente, no cólon. Posteriormente, esta associação foi denominada Síndrome de Muir-Torre, sendo considerada de natureza autossômica dominante. A maioria dos casos se manifesta entre 50 e 70 anos de idade, com predomínio em pacientes do sexo masculino na proporção de 2:1.
    Os tumores cutâneos podem ser neoplasias sebáceas, ceratoacantomas, carcinomas baso ou espinocelulares, sendo os dois primeiros mais freqüentes 13. Tumores de glândulas sebáceas são raros na população geral, e alguns autores sugerem que toda vez que diagnosticados devem suscitar o diagnóstico desta Síndrome 14. São classificados em:
· Adenoma sebáceo: tumor benigno mais freqüentemente associado à síndrome. É caracterizado pela presença de lóbulos de glândulas sebáceas, exibindo células basalóides na periferia.
· Epitelioma sebáceo: tumor benigno, caracterizado pela presença de pequenos lóbulos de glândulas sebáceas envolvidas por células basalóides, apresentando atipias.
· Carcinoma sebáceo: tumor maligno caracterizado pela presença de lóbulos glandulares irregulares com diversas atipias e células indiferenciadas.
· Hiperplasia sebácea: são tumores benignos que, apesar de se originarem de glândulas sebáceas, não estão associados com um aumento da incidência de tumores viscerais malignos ou com outras características da síndrome.
· Os ceratoacantomas têm sido considerados como parte da síndrome devido à sua prevalência elevada nestes pacientes. A associação dos ceratoacantomas com os tumores sebáceos pode ser explicada pelo fato de ambos serem derivados das unidades pilossebáceas.
    Vários tipos de neoplasias viscerais podem estar associados à síndrome, como os adenocarcinomas de cólon, estômago, duodeno, papila de Vater, tumores de laringe, mama, útero, ovário, bexiga, assim como neoplasias hematológicas, sarcomas de retroperitôneo e outros 15.
    Admite-se que as neoplasias viscerais na Síndrome de Muir-Torre têm baixo grau de malignidade, sendo maior a sobrevida nesses casos. No entanto, este fato é contestado por alguns autores 16.
    Há várias outras síndromes em que se associam alterações cutâneas com pólipos gastrointestinais. Na Síndrome de Gardner, pólipos colônicos múltiplos se associam a cistos cutâneos e neoplasias, sendo que os pólipos colônicos se malignizam em 45% dos casos.
    Na síndrome de Peutz-Jegheres, onde lesões hipercrômicas palmares, plantares e de mucosas coexistem com os pólipos intestinais do tipo hamartoma, pode surgir adenocarcinoma intestinal em 2 a 3% dos pacientes. Na Síndrome de Cronkhite-Canada há polipose gastrointestinal associada a alopécia, hiperpigmentação cutânea e onicodistrofia.
    Embora publicações prévias sobre a Síndrome de Muir-Torre não enfatizem a associação com pólipos gastrointestinais, tal relação tem sido não só descrita, como considerada parte da síndrome em mais de 50% dos casos. Curiosamente, nos casos relatados por Muir e Torre, a presença de pólipos adenomatosos fazia parte do quadro descrito.
    Considerando-se a seqüência adenoma-carcinoma, pode-se inferir que o pólipo identificado em exames de rastreamento poderia ser o adenocarcinoma diagnosticado tardiamente. Este fato aumenta a importância do acompanhamento sistemático de pacientes portadores de adenomas sebáceos, bem como de seus familiares 11, 14, 18.
    Até o presente, somente 205 casos da Síndrome de Muir-Torre foram descritos na literatura de língua inglesa, com 399 tumores viscerais associados, correspondendo a uma média de 1,96 tumores por paciente. Os tumores sebáceos podem preceder os tumores viscerais (22% a 28%), às vezes em mais de 20 anos 14, ocorrer concomitantemente (6% a 12%) ou aparecer após aqueles (50% a 59%). Em 16% dos casos, não pode ser estabelecida uma relação temporal entre os dois tipos de neoplasia 17.
    Em 1974 foi descrita pela primeira vez a ocorrência familiar da Síndrome e mais da metade dos relatos de casos incluem malignidade visceral na história familiar 11.

Conclusão
Em pacientes com diagnóstico da Síndrome de Muir-Torre, assim como em seus familiares de primeiro grau, um rastreamento regular para neoplasias é mandatório, devendo os mesmos receberem aconselhamento genético10. Se possível, a análise genética dos tumores viscerais e de pele deve ser feita, pois é bastante útil para um melhor entendimento da doença17. A presença de tumores de glândulas sebáceas por si só já justifica a investigação de tumores viscerais, pois, nos casos de pólipos adenomatosos intestinais, uma ressecção precoce evitaria um câncer no futuro.

SUMMARY: The Muir-Torre's Syndrome is an association of sebaceous glands neoplasia and multiple visceral tumors. We report a case of a 55 year-old male patient with sebaceous gland tumors and a colonic adenoma with familial history of malignancies (first-degree relatives), emphasizing some features of this condition. After a ressection of a nodular dermal lesion, pathologic evaluation revealed a sebaceous adenoma. Screening for internal malignancy has identified a 13 mm pedunculated lesion at cecum. A total of ten dermal lesions were resected, all of them consisted of sebaceous gland neoplasia. No other visceral tumor has been identified until now. Regarding familial history, the patient has a daugther with retroperitoneal sarcoma, his mother had lung cancer and his sister died of leukemia. Whenever a sebaceous gland neoplasia is diagnosed, Muir-Torre's Syndrome should be kept in mind and internal malignancy must be sought.

Key words: Colonic polyp, sebaceous neoplasia, Muir-Torre's Syndrome.

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Endereço para correspondência:
Antônio Lacerda-Filho
Instituto Alfa de Gastroenterologia do
Hospital das Clínicas da UFMG
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E-mail: alacerda@medicina.ufmg.br 

Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG e Grupo de Coloproctologia e Intestino Delgado do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas - UFMG.