OPINIÕES E REVISÃO BIBLIOGRÁFICA


MEGACÓLON - PARTE II: DOENÇA DE CHAGAS

Júlio César Monteiro dos Santos Júnior - TSBCP


SANTOS JÚNIOR JCM. Megacólon - Parte II: Doença de Chagas. Rev bras Coloproct, 2002(4):266-277

Resumo: Uma das principais manifestações viscerais da doença de Chagas é o megacólon e suas conseqüentes complicações, tais como a constipação crônica e severa, a desconfortante distensão abdominal, os fenômenos oclusivos associados ao fecaloma e ao volvo da sigmóide, a necrose da alça volvida, a colite isquêmica ou a úlcera que pode ou não perfurar. Todas comuns e com grau variado de gravidade, que podem ser evitadas com o tratamento do megacólon. Várias são as alternativas possíveis para o tratamento cirúrgico do megacólon chagásico, todas com os objetivos de aliviar os sintomas da doença e prevenir suas complicações. Embora a maioria delas contemple esses objetivos, algumas estão associadas a altos índices de morbi-mortalidade e poucas foram criadas com base nos conhecimentos da fisiopatologia da doença. Assim, operações que incluem amplas dissecções do reto e que naturalmente se associam a número maior de complicações, devem ser evitadas, principalmente nos casos em que o reto tem dimensões normais. Nesses casos, a retirada do segmento proximal do reto e de todo o cólon dilatado com anastomose acima da reflexão peritoneal devolve ao paciente o que poderia ser esperado em termos funcionais, sem os riscos observados com as técnicas desnecessariamente radicais.

Unitermos: Doença de Chagas, megacólon, volvo, fecaloma, tratamento cirúrgico

 MEGACÓLON
O termo megacólon, por consagração, é usado para designar a dilatação e o alongamento do intestino grosso, fundamentalmente devido a alterações da inervação intrínseca dessa víscera, com os conseqüentes distúrbios morfológicos e funcionais. Em sentido lato, no entanto, esse termo abrange, também, todas as ectasias entre as quais estão incluídas as que ocorrem por causa de uma lesão orgânica que estenosa e impede a progressão do conteúdo intestinal com a conseqüente dilatação visceral a montante.
    Com essa definição e com o fator etiopatogenético, o megacólon pode ser congênito e adquirido.

MEGACÓLON ADQUIRIDO - Doença de Chagas
Os "megas" adquiridos, freqüentemente vistos no Brasil e em várias outras regiões da América do Sul, são manifestações tardias da doença de Chagas e se desenvolvem como resultado da destruição irreversível de células ganglionares periféricas do sistema nervoso autonômico e/ou central durante a fase aguda da doença. Nas vísceras ocas a destruição de células ganglionares provoca, com o passar do tempo, o aparecimento das dilatações, hipertrofias e alongamentos caracterizando as enteromegalias.
    Na opinião de Koberle1, exposta em 1963, o nome enteromegalia ou simplesmente "mega" (megaesôfago, megacólon) deveria ser reservado para toda aquela condição em que o segmento dilatado é o próprio segmento doente. Dessa forma não haveria confusões como as ocorridas no passado inclusive motivando abordagem cirúrgica inadequada como ocorreu com a doença de Hirschsprung. Com esse conceito, o termo megacólon congênito deveria ser abandonado.

Incidência
A doença de Chagas continua como grave problema de saúde na América Latina como atestam os números da OMS2. Estima-se ao redor de 17 milhões o número de pessoas infectadas; 300.000 casos novos por ano, com 2 a 3 milhões de pacientes com complicações crônicas da moléstia e 21.000 mortes anuais, decorrentes.
    O megacólon chagásico, uma das complicações da moléstia, é relativamente freqüente entre nós e já foi considerada a doença cirúrgica mais comum do intestino grosso. No Hospital da Clinicas da FMUSP ocupou o 5o. lugar entre as doenças operadas do tubo digestivo; em 10 anos, de janeiro de 1985 a dezembro de 1994, foram operados 160 pacientes (76 na última metade da década de 80, e 84 na primeira metade da década de 90), por causa de megacólon, correspondente, em média, a 5,8% de todas as operações feitas, por ano, na disciplina de Coloproctologia3.
    Não dispomos, no entanto, de outros dados epidemiológicos, como ocorre com o megaesôfago, para maior avaliação da atual realidade a respeito da prevalência de megacólon na população geral ou na população dos pacientes chagásicos. Esse fato tem como explicação a natural dificuldade em se detectar o megacólon, talvez por causa de sua evolução mais lenta e com sintomas mais brandos e, portanto, com a tendência de se manifestar mais tardiamente, ou talvez se deva ao fato que o paciente suporte mais os sintomas de constipação do que de disfagia e, portanto, procure o médico bem mais tardiamente do que o fazem os que são portadores de megaesôfago. Por qualquer que seja a razão, os dados epidemiológicos são raros. Contudo, a estimativa da OMS2 é de 10 a 12% (cerca de 30.000 por ano) dos pacientes chagásicos crônicos desenvolvem o megacólon.
    Estimado por registro de autópsias feitas no Departamento de Patologia da FMRPUSP, temos o megacólon na freqüência de 69/556 autópsias (12,4%), excluindo as crianças e mortes por acidentes2.
    O megacólon predomina ligeiramente nos homens com valor que não expressa significado estatístico. A faixa etária de maior incidência fica entre os 20 e 60 anos, com pico entre os 40 e 50 anos.
    Grande parte da aquisição dessa doença se dá na área rural, em virtude do contato dos indivíduos com fezes de triatomídeos domiciliados. A doença está sob controle e o quadro atual mostra uma prevalência de 0,13%, nas zonas endêmicas, dado obtido por meio de inquérito sorológico.

Anatomia Patológica
A forma digestiva da doença de Chagas compreende as perturbações notáveis na fase crônica envolvendo o tubo digestivo e os principais sintomas dizem respeito a problemas decorrentes dos distúrbios da atividade motora principalmente do esôfago e do cólon esquerdo com as alterações morfológicas que caracterizam os "megas". O substrato anatomopatológico dessas manifestações está na denervação intrínseca das vísceras comprometidas, envolvendo o sistema nervoso autonômico, principalmente o parassimpático, por meio da destruição dos plexos mioentérico e submucoso (Auerbach e Meissner). A demonstração dessa destruição foi feita por Koberle4, no final da década de 50, quando pôs em evidência, após trabalho exaustivo de contagem neuronal dos plexos intramurais, que o intestino grosso em seus diferentes segmentos possuía número de neurônios equivalente, em média, a 5% do normal. Recentemente, Adad5, em um estudo de anatomia patológica, destacou as alterações já bem descritas a respeito do megacólon chagásico, expondo detalhes sobre as alterações macroscópicas e microscópicas freqüentemente encontradas na colopatia chagásica, estabelecendo relação entre a dilatação visceral e a hipertrofia muscular com a redução dos neurônios intramurais. Sobretudo, anotou que a inervação colinérgica está gravemente diminuída no megacólon, especialmente na camada muscular própria. Ao lado dessas evidências, o que já foi colocado como hipótese para a dilatação preferencial para certos segmentos do tubo digestivo (esôfago e cólon esquerdo, principalmente o sigmóide) é o fato de que neles o alimento ou os restos da digestão alimentar (bolo fecal) estão na forma sólida.
    Embora a patogênese da lesão tenha sido e seja, ainda, objeto de vários estudos, a explicação de como ocorre a lesão neuronal continua sendo motivo de controvertidas opiniões. O fato é que não se sabe ao certo como ela ocorre. Contudo, qualquer que seja o mecanismo, parece que o processo se estabelece principalmente na fase aguda, época em que fica determinado o grau da lesão4,6. As alterações morfológicas e manifestações tardias serão, portanto, diretamente dependentes do variado grau da lesão nervosa e, no tubo digestivo, ficaria na dependência, também, da consistência do seu conteúdo.

FISIOPATOLOGIA
As alterações fisiológicas observadas na enteromegalia da doença de Chagas cursam por conta da denervação que é, obviamente, variável de paciente para paciente, pois depende do equilíbrio estabelecido entre o hospedeiro e o T. cruzi, equilíbrio esse que envolve diversos fatores da complexa reação do sistema imunológico.
    Estudos feitos por vários autores têm resultados com evidências de respostas viscerais compatíveis com a de uma estrutura denervada7-11, porém, esses estudos não foram suficientes para conclusões que permitissem definir como é que cada um dos diferentes segmentos do intestino grosso, com sua inervação alterada, participa na gênese do megacólon. Esse aspecto é relevante porque nele nos basearemos para comentar os diferentes tipos de técnicas cirúrgicas propostas para o tratamento do megacólon adquirido.
    Com respeito a isso, os resultados de nosso estudo sobre a sensibilidade retal e o reflexo reto-esfincteriano, contribuíram no sentido de não se interpretar que, na doença de Chagas, as alterações encontradas no reto pudessem ser os fatores determinantes do aparecimento do megacólon10, tal como ocorre na doença de Hirschsprung.

SINTOMATOLOGIA
O quadro clínico da doença de Chagas afetando o intestino grosso se caracteriza pelo aparecimento da constipação intestinal que, na grande maioria das vezes, é de evolução lenta e progressiva. Não se sabe quando, na vida de um paciente que foi infectado pelo T. cruzi, irão surgir as manifestações atribuíveis à colopatia chagásica. Estima-se que o período que separa um evento e outro dure cerca de 20 anos e que o megacólon leve mais 10 ou 20 anos para se estabelecer como tal.
    Essa constipação, de evolução lenta e progressiva, que se torna rebelde a qualquer tipo de tratamento clínico, caracteriza a colopatia chagásica. É comum o relato de constipação inicial de 2 ou 3 dias resolvida com uso de laxativo suave, mas que, com o passar do tempo, torna-se mais intensa, com o número de dias entre uma e outra evacuação aumentando. Evolui assim, durante vários anos, obrigando troca periódica de laxativos, dos mais brandos aos mais fortes, até a situação caracterizada por impossibilidade quase total para a evacuação das fezes. O abdômen cresce e comumente surge a mais freqüente complicação do megacólon chagásico que é o fecaloma. Nada mais do que fezes acumuladas, num único bolo, no interior do intestino, ressecado, de grande volume e impossível de ser propelido pelos movimentos intestinais, que são ineficazes. Esse acúmulo fecal é notável, ao exame do abdômen, às vezes à simples inspeção, às vezes à palpação, quando é possível perceber pela sensação táctil a crepitação que ocorre pelo descolamento da mucosa que à compressão ficou "colada" na superfície grudenta do fecaloma. A sensação é a mesma que se percebe ao afastarmos duas superfícies de couro unidas por goma, ainda úmida. Esse sinal, patognomônico de fecaloma, é chamado sinal de Gersuny. O fecaloma pode, também, ser percebido pelo toque retal.
    Esses sintomas e sinais, ao lado da distensão abdominal provocada pela constipação crônica e dificuldade para expelir gases, os antecedentes do paciente, a zona de origem, a historia familiar possibilitam o diagnóstico de doença de Chagas com megacólon.
    O interrogatório dos diferentes aparelhos comumente fornece outros elementos que subsidiam o diagnóstico. Não é raro que nessa fase da avaliação do paciente sejam reveladas alterações em outros segmentos do tubo digestivo, principalmente no esôfago, bem como sintomas relativos à doença do coração.
    No exame laboratorial, a reação de fixação de complementos, conhecida como reação de Guerreiro e Machado, quando positiva, concretiza o diagnóstico que pode e deve ser confirmado pelo exame radiológico contrastado do intestino grosso (enema opaco) que irá, no caso, revelar um cólon dilatado e alongado, principalmente envolvendo o sigmóide e o descendente e, não raramente, o reto.

COMPLICAÇÕES12
a. Fecaloma
A complicação mais comum é o fecaloma (65%). Difíceis de serem evacuados mesmo com o auxílio de lavagens intestinais, os fecalomas, na maioria das vezes, são de localização baixa, no momento do diagnóstico, e, portanto, passíveis de serem tocados, pelo ânus. Quando isso ocorre, a remoção é digital, estando o paciente sob efeito da raquianestesia limitada à região perineal. Com muito cuidado para não provocar lesões traumáticas, o extremo distal do fecaloma, em geral muito duro, é quebrado e a massa fecal, logo acima, com o auxilio de lavagem com água glicerinada, vai sendo removida digitalmente, até seu esvaziamento completo. Quando o fecaloma é muito alto e impossível de ser tocado, o artifício é promover sua remoção com o emprego de lavagens intestinais repetidas. Quando isso não for suficiente para sua retirada, o fecaloma será removido por ocasião do tratamento cirúrgico do megacólon, sem maiores problemas.

b. Volvo do sigmóide
É a segunda mais freqüente complicação do megacólon chagásico (31,5%), podendo ser sem necrose (28%) ou com necrose (3,5%).
    O volvo é causado pelo alongamento, pela dilatação do cólon e pelo estreitamento que ocorre na base de implantação do meso devido a mesenterite chagásica, que provoca retração do mesmo e faz com que a alça sigmóidea fique flabeliforme. O cólon excessivamente alongado dobra-se sobre si mesmo, acomodando-se na cavidade peritoneal, de tal forma que acaba por facilitar a rotação. Torcido, pode, por oclusão do pedículo vascular, evoluir para necrose12.
    O quadro clínico do paciente com volvo é caracterizado pelos sinais e sintomas de obstrução intestinal. Sobressai a grande distensão abdominal assimétrica (sinal de von Whal). Com a evolução, a distensão de outros segmentos intestinais faz com que o abdômen fique simétrico. O timpanismo sempre é exagerado, podendo, na dependência de haver necrose, somar ao quadro sinais de irritação peritoneal, de desidratação e inclusive os de choque circulatório. O diagnóstico é feito pela história clínica, exame físico e pode ser auxiliado pelo exame radiográfico simples do abdômen.
    A avaliação clínica desses pacientes deve ser cuidadosa, principalmente por causa da possibilidade da necrose intestinal, que deverá ser detectada precocemente. O exame proctológico é obrigatório e, pela endoscopia, pode-se examinar o extremo distal do segmento volvido com a oportunidade para avaliar criteriosamente a situação da mucosa no local da torção e, se as condições forem favoráveis, tentar a distorção endoscópica13-18.
    No tratamento do volvo dois aspectos devem ser considerados com rigor:
a)- se há ou não necrose e
b)- se há ou não possibilidade de distorção endoscópica.
    O diagnóstico de necrose às vezes depende exclusivamente da avaliação clínica que inclui o exame proctológico. Todavia, quando a dúvida é persistente temos recomendado que se considere que a necrose existe. Assim, o tratamento deve ser cirúrgico e a operação consistirá na remoção do segmento volvido e necrótico, optando-se sempre pela colostomia proximal e distal ou pela operação de Hartmman18, em que pese o fato de se tratar de um procedimento associado a complicações freqüentes20.
    A anastomose primaria não tem sido preconizada por causa da necrose intestinal associada, do edema presente, do caráter urgente da operação e por causa da falta do melhor preparo pré-operatório. Em geral, esses pacientes são reanimados e imediatamente opetados. Além disso, grande parte das vezes, o atendimento e o tratamento são feitos por cirurgiões menos experientes o que, certamente, acrescenta riscos à operação.
    Se não há necrose, a primeira tentativa de tratamento do volvo, como já referido, é a distorção endoscópica que é executada com o auxilio do retossigmoidoscópio e de uma sonda retal de Fouchet. A tentativa de introdução da sonda pelo ponto de torção deve ser parcimoniosa. Alcançado o intento, a sonda é deixada no local, pelo menos, por 12 horas. O esvaziamento que se faz pela sonda é suficiente para desfazer o volvo, que é parcial. O paciente deve ficar em observação, pelo menos, por 24 horas, e examinado periodicamente. Se a tentativa de distorção endoscópica não conduz ao bom êxito, a opção de tratamento torna-se cirúrgica. Nessa oportunidade, o volvo é desfeito e o meso do cólon sigmóide é aberto para se desfazer o estreitamento da base de implantação do mesmo. Nós temos usado como técnica a abertura longitudinal do mesossigmóide, ou seja, no sentido dos vasos sigmoideos, com posterior sutura transversal. Isso permite não só o alargamento da base de implantação como também o encurtamento da altura do mesocólon. Há quem recomende colostomia proximal, feita no cólon transverso, com a justificativa de evitar nova torção e permitir melhor preparo para o tratamento definitivo. Nem um e nem outro argumento é justificativa, a meu ver, correta. Primeiro porque, embora diminua a oportunidade, a colostomia não evita nova torção; segundo, porque o preparo pré-operatório para operação do intestino grosso não inclui, necessariamente a colostomia; terceiro, porque a colostomia significa ônus social e econômico muito grande para o paciente em troca de pouco ou nenhum benefício; por último, porque o futuro tratamento da colostomia envolve, além de custo institucional e social, consideráveis riscos para o paciente, pelas complicações a que está associado seu fechamento. Apesar disso, 26% dos pacientes operados com volvo, em nossa Instituição, ficaram com colostomia. Esse dado inclui, evidentemente, 6% dos pacientes que tinham volvo com necrose.

c. Colite isquêmica
A colite isquêmica, não dependente do volvo, é a terceira mais comum complicação do megacólon e compromete 6% dos pacientes21-23.
    Tem sido confundida como retocolite ulcerativa, concomitante, ou como complicação tóxica de etiologia bacteriana associada a retenção fecal, que é comum na colopatia chagásica24,25.
    A colite isquêmica tem sido descrita por nós como complicação do megacólon chagásico desde 1979, pois no grupo de 75 pacientes com esse problema, 39 deles (54%) eram chagásicos com megacólon23, sem doenças vasculares periféricas clinicamente demonstráveis.
    A colite isquêmica, no megacólon, caracteriza-se pela mudança de hábito intestinal onde a constipação crônica dá lugar à diarréia, mais evidente quanto mais distal for o comprometimento do cólon. A diarréia, no entanto, é pouco notável naqueles pacientes em que o fenômeno isquêmico compromete o cólon descendente. Esse fato é explicado pela presença do megacólon distal à zona comprometida pela isquemia, que compensa o volume exsudado ou não absorvido pelo segmento inflamado. Com diarréia franca ou não, a evolução é crônica com marcado comprometimento do estado geral do paciente, com queda da hemoglobina, diminuição das proteínas plasmáticas, aparecimento de edema, por causa da hipoproteinemia, anorexia, emagrecimento e febre. O intestino grosso comprometido, ao longo da evolução da doença, exibe alterações radiológicas semelhantes às vistas nas doenças intestinais inflamatórias crônicas com estenoses ou pseudopólipos. Do ponto de vista endoscópico, as lesões se caracterizam por entremeado de tecido de granulação piogênica, mucosa normal, e mucosa em fase de franca regeneração, com úlceras rasas ou profundas, de formas bizarras, conferindo ao revestimento intestinal aspecto pseudopolipóide, semelhante aos descritos nas doenças inflamatórias dos cólons; imagens muito mais próximas às da doença de Crohn do que às da retocolite ulcerativa. Na fase crônica, há estreitamento fibrótico segmentar do cólon, ao qual se associam sinais e sintomas obstrutivos. O exame histopatológico confirma o diagnóstico principalmente quando se encontram fagócitos com hemossiderina depositada no seus citoplasmas.
    O tratamento da colite isquêmica, com essa evolução, é sempre cirúrgico, porém exige recuperação do estado geral do paciente, que quase sempre não são muito jovens.
    A derivação intestinal é medida paliativa que proporciona notáveis benefícios, não só por promover o alívio da diarréia ou dos sintomas obstrutivos, quando ocorrem, como também por evitar o contínuo traumatismo provocado pelas fezes no segmento isquêmico, que só fazem por intensificar as perdas sangüíneas e protéicas. Recuperado, o paciente é operado de forma eletiva para a ressecção do megacólon e do segmento isquêmico.

d. Úlcera por estase fecal
A úlcera por estase fecal, também chamada úlcera de "decúbito", é de etiologia isquêmica e decorre da compressão localizada da mucosa pela massa fecal pétrea. O nome decúbito, para essa úlcera, vem desse fato. A mais grave complicação da úlcera é a perfuração com a peritonite fecal conseqüente. A úlcera incide em 2,8% dos pacientes e a metade apresenta perfuração (1,4%)12.
    O diagnóstico da úlcera não perfurada, em geral, é feito após a ressecção do megacólon e durante o exame anatomopatológico da peça cirúrgica. Quando perfurada, o diagnóstico clínico é o da peritonite, cuja etiologia fica constatada no intra-operatório. Nessa condição, melhor do que tentar ressecar o megacólon com a perfuração, é exteriorizar a área perfurada, como colostomia, após o "tratamento" de seus bordos.
    A peritonite é tratada como peritonite fecal para o que recomendamos associação antimicrobiana de largo espectro de ação e lavagem exaustiva da cavidade peritoneal, com fechamento primário da parede abdominal12, seguimento rigoroso e re-intervenção de acordo com o quadro clínico evolutivo do paciente.

TRATAMENTO CIRÚRGICO DO MEGACÓLON
O tratamento cirúrgico do megacólon evoluiu, até certo ponto, de acordo com as concepções a respeito da fisiopatologia e dos conhecimentos acumulados sobre a sua gênese, porém com os autores tomando, muito mais, como base o que era observado de resultados obtidos em estudos feitos com a doença de Hirschsprung.
    A grande influência que os conceitos de autores alemães, ingleses e franceses exerceram sobre os cirurgiões brasileiros pode ser notada na forma rápida com que as técnicas cirúrgicas desenvolvidas para o tratamento da doença congênita foram sendo importadas e usadas no tratamento do megacólon chagásico, com modificações que mais as adaptavam às características pessoais e às limitações da época, do que aos conhecimentos de quais eram e como eram os fatores ou por quais mecanismos eles participavam na origem dos "megas", na doença de Chagas.
    Assim, em alguma época, as simpatectomias e esficterotomias tiveram seu lugar na abordagem cirúrgica do megacólon chagásico, mesmo que entre nós pareça ter sempre predominado a idéia de que o segmento cólico dilatado deveria ser incluído nas ressecções.
    A tendência, no entanto, de se estabelecer analogia entre as duas doenças persiste até hoje . Há quem ache que o reto, na doença de Chagas é especialmente denervado, como na doença de Hirschsprung, mesmo após as demonstrações histopatológicas feita por Koberle, em exaustivas contagens de neurônios, ao longo do intestino grosso, tanto de seres humanos como de animais de experimentação. Koberle1,4,6,26,27 evidenciou que a denervação é um fato universal e que o número de neurônios contados no reto é semelhante ao contado no ceco ou em outro segmento do tubo digestivo27. Por outro lado, no megacólon chagásico os segmentos não dilatados, ao contrário do que tem sido observado na doença de Hirschsprung, são os que apresentam maior quantidade de neurônios preservados28.
    Os estudos sobre a fisiopatologia do megacólon, as respostas sensíveis do reto, a integração do reflexo reto esfincteriano, a atividade motora do segmento retal e o sincronismo de funcionamento do esfíncter anal interno não estão, ainda, suficientemente exauridos para conclusões que permitam imputar a qualquer dos segmentos do intestino grosso as razões para o desenvolvimento do "mega". Por outro lado, os trabalhos desenvolvidos isoladamente prestam-se mais às interpretações precipitadas do que contribuem para elucidar dúvidas que persistem a respeito da gênese dos "megas" na doença de Chagas.
    O reto foi e tem sido considerado o segmento, se não gerador, pelo menos mais importante como participante na escala dos eventos que acabam culminando com as alterações morfológicas costumeiramente vistas na colopatia chagásica. Por essas concepções, não comprovadas, o paciente chagásico, com megacólon, com ou sem megarreto tem recebido o mesmo tratamento cirúrgico dispensado aos pacientes com doença de Hirschsprung.
    Operação radical para doença relativamente benigna - essa foi uma das críticas feitas durante a década de 50, endereçada à técnica de Swenson _ tem sido empregada no tratamento do "megacólon" congênito.
    A idéia de Duhamel29, com algumas modificações, permitiu encontrar a técnica cirúrgica que evitou as dissecções amplas do reto e superou as deficiências funcionais do segmento denervado. O que ele propôs foi associar a sensibilidade retal preservada ao poder mecânico de segmento proximal do cólon normal com o objetivo de dar ao reto a função congenitamente perdida, o que não se aplica à doença de Chagas, em que a denervação do intestino grosso não se limita ao reto. Mas, foi assim que as técnicas cirúrgicas para o tratamento do megacólon chagásico foram sendo importadas ou criadas e continuam sendo discutidas, até hoje, nos nossos Congressos.
    O advento de novas técnicas ou as variações táticas das existentes, ensejadas pela busca de uma melhor opção para o tratamento do problema, parecem não ter sido desenvolvidas alicerçadas em novas concepções sobre a fisiopatologia do megacólon chagásico.
    Cutait30 escrevendo o capítulo sobre tratamento do megacólon chagásico, no livro: Rumos Modernos da Operação, de Eurico da Silva Bastos, edição de 1969, anotou que "a retossigmoidectomia, por via abdominal, constituiu a intervenção de eleição, no período de 1947-1962. Nesta operação, baseada no conceito etiológico, então prevalecente, de acalasia do esfíncter pelvi-retal, fazia-se a ressecção do cólon sigmóide dilatado e de extenso segmento do reto com o trânsito estabelecido por meio de anastomose que ficava sempre extraperitoneal".
    A retossigmoidectomia abdomino-perineal com anastomose colorretal imediata foi realizada de rotina no período de 1952-1958. A modificação tática deveu-se ao fato de não mais se considerar o megacólon conseqüente a acalasia do esfíncter pelvi-retal e sim a discinesia do segmento retal. No entanto, o procedimento foi, também, abandonado por causa do elevado índice de deiscência. A mesma operação, porém com o abaixamento do cólon e anastomose retardada, foi introduzida em 1959 e executada como operação de escolha a partir dessa data"31.
    O megacólon chagásico tem indicação de tratamento cirúrgico não só por causa dos sintomas rebeldes de constipação, mas, também, pelo risco das complicações comuns e de graves conseqüências que acompanham essa doença.
    O tratamento é paliativo, alivia a constipação evitando, portanto, a formação do fecaloma e do volvo.
    Por se tratar de doença sem cura, de caráter benigno cuja fisiopatologia não é integralmente conhecida e na impossibilidade de se escolher uma técnica que devolva ou restaure ao máximo a função e "normalizando" os distúrbios conseqüentes à inervação destruída, o procedimento cirúrgico deveria servir apenas para aliviar os sintomas de prisão-de-ventre. Deveria ser, portanto, o mais conservador possível, o mais fácil de ser executado; o que oferecesse o menor risco para o paciente, mutilasse menos e produzisse a mínima perturbação das funções ainda preservadas.
    Não tem sido possível contemplar essas condições com técnicas cirúrgicas que envolvem amplas dissecções e ressecções do reto, nas quais a reconstrução do trânsito intestinal é feita com anastomose próxima ao canal anal.
    A falta de conhecimento ou a valorização dos dados disponíveis a respeito da fisiopatologia contribuiu certamente para o grande número de técnicas cirúrgicas usadas no tratamento do megacólon. Todos sofreram essa influência.
    As técnicas descritas e usadas no tratamento cirúrgico do megacólon chagásico podem ser enumeradas, assim:
1. Sigmoidectomia simples,
2. Retocolectomia anterior limitada ou estendida, com ampla (abaixo da reflexão peritoneal) ou pouca resseção do reto (acima da reflexão peritoneal) e
3. Retocolectomia anterior com abaixamento colo-anal

1. Sigmoidectomia
Ao contrário do que ocorreu com o tratamento do megacólon congênito, a sigmoidectomia simples, segura e de baixa morbidade, deu bons resultados quando usada para o megacólon chagásico. Sua indicação indiscriminada foi seguida, no entanto, de recidiva, em longo prazo, notável em vários pacientes, reforçando a idéia de que o reto deixado no trânsito poderia ser a causa do desenvolvimento da dilatação do cólon que permanecia a montante.
    Como a denervação intestinal na doença de Chagas é aleatória e imprevisível, é de se supor que qualquer que seja o segmento extirpado, a recidiva será certa e virá na dependência apenas do tempo, que será menor nas situações em que o segmento conservado for mais denervado e maior quando ao contrário, pouco importando, portanto, se o reto foi ou não retirado. Isto é, se o segmento retal for o mais denervado, certamente sua presença imporá grande dificuldade para a progressão do bolo fecal até sua passagem pelo ânus; se, por outro lado, o reto for o segmento menos denervado não terá a participação tão pronunciada no desenvolvimento do megacólon a montante.
    Não há um parâmetro dentro do exame clínico que permita suspeitar qual segmento intestinal tem sua inervação mais comprometida, exceto a dilatação que acreditamos ser, também, dependente do estado físico do conteúdo da víscera dilatada.
    Se compararmos a imagem radiológica do megacólon chagásico obtida com contraste com a mesma imagem do intestino grosso, na doença de Hirschsprung, seria de se supor que quando segmento retal tivesse um perfil radiológico semelhante ao normal ele estaria mais denervado, justificando o cólon esquerdo alongado e dilatado, portanto, as partes proximais estariam alongadas e dilatadas às custas da obstrução imposta pela discinesia retal, tal como ocorre na moléstia de Hirschsprung.
    Essa foi a idéia, a meu ver, equivocada, que determinou a racionalização da tática operatória para o megacólon chagásico.
    Koberle1,4 alertou contra esse tipo de equivoco quando propôs reservar o prefixo "mega" para a condição em que o segmento dilatado fosse o próprio segmento doente, para que, na doença de Chagas não houvesse as mesmas confusões notadas no passado e que motivaram abordagem cirúrgica inadequada, como ocorreu com a doença de Hirschsprung. Posteriormente, por meio de exames histopatológicos, foi observado que os segmentos não dilatados dos cólons eram os que apresentavam percentual mais alto de plexos mioentéricos preservados28.
    Com esse raciocínio, desenvolvemos um estudo da fisiopatologia desse segmento em pacientes chagásicos com megacólon e megarreto, em pacientes chagásicos com megacólon e retos "normais" (não dilatados) e em pacientes não chagásicos e com funcionamento intestinal normal10.
    As dimensões do reto foram avaliadas por meio de técnica radiológica padronizada e com elas procedeu-se à comparação dos retos dos pacientes normais com os dos pacientes com megacólon chagásico. Fruto dessa comparação, esse grupo foi dividido em dois subgrupos: primeiro, pacientes com "megacólon e reto normal" e, segundo, pacientes com "megacólon e megarreto".
    O estudo não incluiu o registro da atividade motora do intestino grosso, mas permitiu a avaliação do reflexo reto-esfincteriano por meio concomitante de registro eletromiográfico e da sensação subjetiva do conteúdo retal estimulada por balão inflável alojado na ampola retal. O estímulo, pela inflação do balão, foi feito até a manifestação da vontade insuportável de evacuar, anotando-se, ao mesmo tempo, o volume contido no interior do balcão e a pressão exercida pelo mesmo nas paredes do reto.
    Conclusões: a. o volume necessário para despertar a sensação de conteúdo retal com vontade leve e passageira de evacuar começou com 20 ml e provocou desejo insuportável de evacuar com 115 ml, nos pacientes normais; b. o mesmo ocorreu com os pacientes chagásicos com megacólon e retos "normais", que, diga-se, foram capazes de evacuar o balão; c. o reflexo reto-esfinceriano estava preservado nos pacientes chagásicos, independente da dimensão do reto _ isto é, o estímulo retal inibiu a atividade da musculatura do canal anal e foi registrado pelo paciente como vontade de evacuar _ de grau leve e passageiro até insuportável, seguido da evacuação do balão. Contudo, os pacientes com megarreto, diferente dos normais e dos que tinham megacólon com reto "normal", suportaram volumes de até 400 ml (máximo), mas não foram, evidentemente, capazes de evacuar o balão, dadas as suas dimensões.
    Essas observações, desde que obtidas, foram consideradas relevantes na escolha da técnica cirúrgica para o tratamento do megacólon chagásico. Assim, as operações com ressecções mais amplas do reto ou as técnicas de abaixamento passaram a ser reservadas apenas para os pacientes com megacólon e megarreto. O paciente com megacólon e reto "normal" ou não dilatado recebeu tratamento mais conservador que consistiu da retocolectomia anterior, nas quais apenas o segmento proximal do reto e o cólon dilatado eram extirpados.
    A sigmoidectomia foi operação usada para o tratamento de 22 pacientes. Vinte deles foram acompanhados e o resultado foi considerado bom em 75% deles e regular em 20%. Em 5%, o resultado não foi satisfatório.(Tabela-1)

Tabela 1 - Avaliação de resultados em termos funcionais, em 878 pacientes operados de megacólon chagásico.     

  SIG  RA  CAR  Abaixamentos colon anais Outras
a. Cutait b. Duh d. DH
Resultados  N=22 N=453 N=50 N=29 N=34 N=253 N=34
Bom  75% 84,0% 66% 41% 82,4% 78% 50%
Regular  20% 13,3% 28% 55% 17,6% 17% 26,5%
Ruim  5% 2,7% 4% 4% - 5%  23,5%
Sig=sigmoidectomia; RA=retocolectomia anterior ;CAR=Cardoso; Duh=Duhamel; DH= Duhamel-Haddad e Outras=(abaixamento com íleo, Hartmann; colostomia, íleo-reto anastomose)

2. Retocolectomia anterior (retossigmoidectomia limitada ao sigmóide ou estendida para segmentos proximais do cólon com pouca ou ampla resseção do reto)
Iniciou-se, nos meados da década de 50, com a retossigmoidectomia anterior com modificações que oferecessem a maior segurança aos pacientes já que naquela época os recursos clínicos e de técnica cirúrgica não permitiam anastomoses colorretais abaixo da reflexão do peritônio com índices de deiscência inferiores a 30%.
    A retossigmoidectomia era então feita em 3 tempos. O procedimento iniciava com a colostomia no transverso, que servia também para melhor preparo do cólon. Num 2o. tempo fazia-se a retossigmoidectomia clássica, mantendo a colostomia que era fechada num 3o. tempo. Esses procedimentos, evidentemente objetivavam maior segurança para uma operação que nos dias atuais é feita em um só tempo, com índices insignificantes de complicações.
    Variante dessa técnica, usada entre nós, em 6% dos pacientes foi a operação descrita por Cardoso que consistia em deixar o reto maior do que na retossigmoidectomia, retirar uma faixa circular de 2cm ou mais da mucosa do reto, desde o extremo proximal preservado indo no sentido crânio-caudal, inverter o segmento muscular correspondente, inserir o cólon por sobre o segmento muscular invertido e fazer a anastomose do cólon com o reto tendo como limite a linha da circunferência onde inicia a mucosa retal (2 ou mais cm abaixo). Em seguida, desfaz-se a inversão da parede muscular do reto, que permanece como um tubo muscular protetor da anastomose. Esse tipo de proteção dado para a anastomose é de fato eficiente. O procedimento é mais elaborado por exigir a dissecção via abdominal de um segmento circular de mucosa retal, o mais longo possível, para depois, invertendo o envoltório muscular sem a mucosa poder fazer a anastomose do segmento proximal remanescente ao nível da mucosa que restou no reto distal. Ao término a manga muscular é posta em sua posição natural e suturada à serosa do colon. Os resultados foram considerados bons em 66% dos pacientes e regulares em 28%. Houve 8% de complicações com a anastomose (3 deiscências e um estreitamento), todas com solução clínica.
    A retossigmoidectomia anterior foi, posteriormente, abandonada com base no índice de complicação e nas idéias de que o segmento retal tinha papel preponderante na gênese do mega. Deixá-lo no transito seria oferecer oportunidade para recidiva precoce do megacólon. Talvez muito mais pelas complicações do que pela oportunidade de recidiva, foram adotadas as técnicas de abaixamento, que excluíam a anastomose do transito intestinal. Primeiro foi a operação de Cutait31, depois a de Simonsen e col32. e a de Duhamel modificada por Haddad33, conhecida entre nós como operação de Duhamel-Haddad.
    A partir de 1977, passamos a selecionar os pacientes para a técnica cirúrgica mais adequada, segundo a avaliação radiológica do reto quanto às suas dimensões. Assim, a retossigmoidectomia anterior envolvendo a excisão do reto proximal passou a ser o procedimento de escolha para o tratamento do megacólon chagásico quando o reto "parecia" normal. Quarenta e nove por cento dos nossos pacientes, com retirada do reto proximal e variada extensão do cólon indo ao sentido cranial, foram operados por causa de megacólon. Houve 3 óbitos (0,7%) e 6 deiscências de anastomoses (1,4%) entre outras complicações. O resultado final foi considerado bom e regular em 83,5% e 13,7% dos pacientes, respectivamente. Se somarmos a esse grupo os que foram submetidos apenas a sigmoidectomia o grupo, cujo tratamento cirúrgico não envolveu amplas dissecções e extirpações do reto, representará 53% dos pacientes operados, com 7 deiscências de anastomoses (1,5%), 6 óbitos (1,5%) com um resultado final bom em 83% e regular em 14% dos pacientes.

3. Retocolectomia anterior com abaixamento colon-anal
a. Operação de Cutait34
Idealizada pelo Prof. Daher Cutait para resolver dois grandes problemas relacionados à operação do megacólon. O primeiro diz respeito à idéia esposada pelo autor de que os procedimentos cirúrgicos executados somente por via abdominal, mesmo aqueles que envolviam a retirada do reto intraperitoneal estarem sujeitos à maior recidiva por causa da permanência do reto discinético. O autor estava entre os que, como já mencionamos, acreditavam ser o reto, na doença de Chagas, o mais importante segmento causador do mega. Cutait adotou a idéia baseada em suas observações34,35 e de Raia36, quando descreveram o reto como segmento agangliônico, em todos os casos de megacólon adquirido, numa época em que pouco ou nada se sabia a respeito da fisiopatologia do megacólon chagásico, exceto o que se transportava de estudos feitos com a doença de Hirschsprung, para raciocinar com o megacólon adquirido.
    Os primeiros estudos sobre a fisiopatologia do megacólon surgiram em 1961, mas publicados em 19647-9 com pesquisas sobre a motilidade do cólon dilatado sob a ação de agentes colinérgicos. Esses estudos trouxeram evidentemente subsídio para conclusões a respeito do aspecto farmacológico da estrutura denervada mas não concluíram a respeito da participação do reto e do canal anal na gênese dos "megas". Por outro lado, estudos posteriores não confirmaram os achados de Cutait34, no que diz respeito ao aspecto da fisiopatologia do reto e sua gênese no aparecimento dos megas34,36.
    A denervação existe, é variável, é importante, ocorre em todos os segmentos do tubo digestivo, mas aganglionose não tem sido descrito. Koberle1,4,6 após estudos exaustivos e contagem de neurônios ao longo do tubo digestivo demonstrou que, do reto ao ceco, o intestino grosso do chagásico tem diminuição substancial de neurônios (o restante corresponde em média 5% do normal) sem predomínio, nessa perda, de um segmento sobre o outro. Por esse aspecto, a retirada do reto não pode ser justificada. e não o é, nem na prática, quando se observa a incidência de recidiva ocorrendo, independente da técnica cirúrgica empregada.
    O segundo problema aliviado pela idealização de Cutait34,35 foi contornar os riscos da deiscência. O grande mérito da técnica é permitir anastomoses mais baixas sem os riscos de deiscência e a necessidade de colostomia transversa protetora, mas com a desvantagem de exigir extensa dissecção do reto, principalmente o descolamento muscular da parte alta do canal para proporcionar uma inversão completa. A incontinência fecal e os distúrbios da esfera genito-urinária são complicações possíveis e relevantes quando se usa essa técnica. Foi usada, por nós, em número relativamente pequeno de pacientes com megacólon chagásico (29 pacientes) e os resultados foram considerados bons em 41% deles e regulares em 55%. Dezoito por cento dos pacientes referiram incontinência duradoura e houve 27% de estenose (Tabela-2).

Tabela 2 - Relação das mais freqüentes complicações observadas no pós-operatório em 856 pacientes com megacólon chagásico operado.

  RA  Cutait  DH DU Card Outras
Deiscência  42 (9,9%) - 3(1,2%)  10(29,4%) 4(8%) 3(8,8%)
Estenose  3 (0,7%) 2(6,8%) 23(9,2%) - 1(2%) 1(2,9%)
Incont trans - 2(6,8%) 10(4%) 1(2,9%) - 1(2,9%)
Incont pers 4(1,6%) - - -
Diarréia  3 (0,7%) - - - - 2(4,8%)
Fecaloma  - - 3(1,2%) - - -
Necrose cólon abaixado 4(13,8%) 4(1,6%) - - -
Óbito 3 (0,7%) - 3(1,2%) 1 2(4%) 7(20,6%)
RA=retocolectomia anterior; DH=Duhamel-Haddad; DU=Duhamel; Card=Cardoso;Outras = (abaixamento com íleo, Hartmann; colostomia, íleo-reto anastomose); Incont trans= incontinência transitória; Incont pers= incontinência persistente.

b. Operação de Duhamel
Técnica elegante para o tratamento da doença de Hirschsprung foi descrita por Duhamel29, em 1960. Mais fácil de ser feita, teoricamente, foi criada para obter a restauração da função motora do reto.
    Com a técnica de Duhamel29,37 que consiste do abaixamento do cólon pelo espaço retro-retal, com a preservação do reto e de todo o tecido perirretal, e com as modificações introduzidas por Martin e Alteimeir38, em 1962, visa-se usar as propriedades sensitivas preservadas do reto denervado, acrescentando-lhe a atividade motora ausente, pela justaposição do cólon normal, numa anastomose lado a lado, confeccionando um tubo cuja metade anterior é formado pelo reto e a metade posterior pelo cólon.
    Várias e importantes modificações foram introduzidas no procedimento ideado por Duhamel e o resultado foi mais uma técnica, hoje adotada em todos os centros de operações pediátricas, principalmente no Brasil, onde começou, também, a ser usada para o megacólon chagásico. Para esse intento, foi mais difundida entre nós depois da modificação proposta por Haddad e col.33.
    A variação introduzida pelo cirurgião paulista consiste numa anastomose de maturação tardia, não exposta ao trânsito intestinal, numa forma de evitar as deiscências, que são complicações de graves conseqüências e de alta incidência, nas operações colorretais com anastomoses baixas.
    Na análise crítica da operação de Duhamel, Grospel e col.39 recomendaram o procedimento como de escolha no tratamento da doença de Hirschsprung e, entre nós, por analogia, ela também foi recomendada para o megacólon chagásico.
    As complicações mais comuns da operação de Duhamel foram citadas anteriormente40.
    A operação de Duhamel, do ponto de vista técnico, como dissemos, é de fácil execução, segura e não exige as amplas dissecções do reto. Nela, todo o segmento extraperitoneal do reto é preservado. A mobilização do reto interessa apenas sua face posterior que é descolada, por meio de dissecção romba, do sacro.
    Os passos técnicos principais exigem o descolamento delicado do reto, de sua aderência com o sacro, preservação da artéria retal superior e a mobilização do cólon sigmóide, que em geral está alongado e dilatado. Essas alterações, às vezes se prolongam em sentido cranial, envolvendo o descendente e o cólon transverso. Tal como ocorre na doença de Hirschsprung, procuramos, também, identificar uma "zona de transição" em geral indicada pelo estreitamento da tênia, muito alargada no segmento dilatado. E'claro que, no caso do megacólon chagásico, de forma alguma esse aspecto avalia corretamente a extensão do segmento denervado; de forma alguma significa que a parte escolhida como limite para a secção é divisor entre o segmento distal denervado e o segmento proximal normal. A víscera é universalmente denervada e escolhemos apenas o segmento mais dilatado para a remoção. O reto é seccionado imediatamente acima da reflexão do peritônio e fechado com sutura mecânica ou manual. Os passos seguintes seguem os mesmos descritos para o tratamento da doença de Hirschsprung até a confecção da anastomose término-lateral que depois é transformada em uma anastomose latero-lateral, por esmagamento, entre pinças do septo reto-cólico. A retirada do septo confere ao procedimento a imagem de um tubo cuja metade posterior é formada pelo cólon abaixado e a metade anterior pelo reto preservado. A diferença, quando se trata do megacólon chagásico é que a metade posterior, nessa anastomose, representada pelo cólon abaixado, é tão denervada quanto a metade anterior, representada pelo reto. A despeito disso, fica criada uma ampla "ampola retal" cuja calha anterior é formada pelo reto, e a posterior pelo cólon abaixado.
    O inconveniente dessa operação, como já foi mencionado, deve-se às eventuais imperfeições na retirada do septo entre o reto e cólon, o que pode manter uma parte do reto como um coto cego isolado, favorecendo a formação de fecaloma no seu interior.
    A operação de Duhamel, tal como foi preconizada para a doença de Hirschsprung foi usada, numa série de dados de que dispomos, em 34 pacientes com megacólon chagásico. Foi com essa técnica que se pôde observar o maior índice de complicações no pós-operatório imediato. Doze pacientes (35,3%) apresentaram complicações e entre elas as mais comuns foram deiscência do coto de reto (17,6%), deiscência da anastomose (11,7%), além de incontinência fecal. Em 5 pacientes (41%) dos que tiveram complicações, foi necessário um procedimento cirúrgico suplementar. Os resultados finais, no entanto, foram considerados bons em 82,4% dos pacientes e regulares em 17,6%. Dois pacientes referiram disfunção sexual, após o tratamento cirúrgico.
    Essa operação foi abandonada em favor do mesmo procedimento com a modificação proposta por Haddad e col.33.

c. Operação de Duhamel-Haddad33
Os passos técnicos são os mesmos descritos para a técnica de Duhamel, exceção feita para a anastomose colorretal, principal modificação sugerida por Haddad, que é do tipo retardado. Isto é, o cólon é exteriorizado pelo ânus e a anastomose colorretal fica para ser feita 10 a 15 dias depois, quando, então é seccionado o septo formado pela parede posterior do reto e a anterior do cólon abaixado.
    Esse procedimento, desde 1966 até 1994, foi feito em 253 pacientes com megacólon chagásico e os resultados foram considerados bons em 78% dos casos e regulares em 17%. As complicações mais freqüentes foram estenose da anastomose (9,2%), incontinência transitória (4%) e destes, alguns pacientes permaneceram incontinentes (1,6%). Necrose do coto de cólon abaixado (1,6%) e 3 óbitos operatórios (1,2%) foram as outras complicações (Tabela-2).
    Em suma, várias são as alternativas possíveis para o tratamento cirúrgico do megacólon chagásico, todas com os objetivos de aliviar os sintomas de constipação intestinal, evitar o volvo e a formação de fecaloma. Embora a maioria delas contemple esses objetivos, algumas estão associadas a altos índices de morbi-mortalidade e poucas foram criadas com base nos conhecimentos da fisiopatologia da doença. Assim, operações que incluem amplas dissecções do reto e que naturalmente se associam a número maior de complicações, devem ser evitadas, principalmente nos casos em que o reto tem dimensões normais. Nesses casos, a retirada do segmento proximal do reto e de todo o cólon dilatado com anastomose acima da reflexão peritoneal devolve ao paciente o que poderia ser esperado em termos funcionais, sem os riscos observados com as outras técnicas.

Summary: Chagas' megacolon is a common complication of south-American tripanosomiasis that results in severely chronic constipation. The disease is due to acquired universal lesions of myoenteric ganglions with partial or complete degenerative changes of the ganglion cells (Auerbach & Meissner's plexus). Unlikely Hirschsprung's disease the surgical management of Chagas' megacolon is not at all curative. So, its surgical treatment must involve the removal of dilated intestinal segment, therefore the main procedure should be the anterior rectocolectomy including only the proximal part of rectum.

Key words: Chagas' megacolon, complications, surgical management

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