RELATO DE CASO
Carlos Augusto Real Martinez - TSBCP
Denise Gonçalves Priolli - ASBCP
Rogério Tadeu Palma - TSBCP
Jaques Waisberg _ TSBCP
Nelson Fontana Margarido
MARTINEZ CAR, PRIOLLI DG, PALMA RT, WAISBERG J, MARGARIDO NF. Obstrução Intestinal por Enterolito Formado
em Divertículo de Meckel: Relato de
Caso. Rev bras Coloproct, 2004; 24(2): 165-169.
RESUMO: O divertículo de Meckel representa a anomalia congênita mais freqüente do trato gastrointestinal, ocorrendo em cerca de 2% da população. A formação de cálculos no interior do divertículo, provocando obstrução intestinal é entidade raramente descrita. O objetivo do presente relato é apresentar um caso de obstrução intestinal, provocada pela extrusão parcial, para a luz intestinal, de enterolito formado no interior de divertículo de Meckel. Enfermo de 37 anos, com antecedentes de cólicas abdominais cíclicas de longa duração, que desenvolveu quadro clínico de obstrução intestinal por enterolitíase primária de divertículo de Meckel, confirmada pela radiografia simples, ultras-sonografia e tomografia computadorizada do abdômen e tratado, com sucesso, pela ressecção intestinal segmentar. Os autores realizam revisão da literatura pertinente, destacando os principais aspectos etiopatogênicos, clínicos, diagnósticos e terapêuticos desta inusitada complicação do divertículo de Meckel.
Unitermos: Obturação, Enterolito, Obstrução intestina,l; Diverticulos,e; Intestino delgado.
INTRODUÇÃO
O divertículo de Meckel (DM) representa
a anomalia congênita mais freqüente do
trato gastrintestinal, ocorrendo em cerca de 2% da
população1. Trata-se de divertículo verdadeiro localizado na
borda anti-mesentérica do íleo e, usualmente, localizado
entre 30 e 150 cm de distância da válvula íleo-cecal
2. Ocorre em virtude do fechamento incompleto do
ducto onfalomesentérico ou vitelino entre a
7a e 8a semana de
gestação3.
A doença tem curso
assintomático, sendo, na maioria das vezes, achado durante a
realização de laparotomias ou necropsias
4,5. Habitualmente, o diagnóstico é realizado quando surgem
complicações relacionadas à presença do divertículo e
representadas por hemorragia, intussuscepção, obstrução
intestinal por volvo ou herniação interna,
perfuração, diverticulite ou neoplasias
2.
A formação de enterolito no interior do DM
é evento pouco descrito na literatura
6. A obstrução intestinal conseqüente a enterolitíase é complicação
pouco freqüente, raramente descrita e que ocorre
em virtude da extrusão do enterolito para a luz do
intestino delgado com obturação distal ou, mais raramente
ainda, pela obstrução no nível do próprio divertículo
7.
O objetivo do presente relato é apresentar
caso de obstrução intestinal provocada pela obturação
da luz do intestino delgado por enterolito, de
grandes proporções, localizado no interior de DM.
RELATO DO CASO
Homem de 37 anos, procurou o Serviço de Urgência queixando-se de dor
abdominal em cólica há dois dias, acompanhada de
náuseas, vômitos, distensão abdominal e parada de
eliminação de gases e fezes. Há 24 horas a dor aumentou
de intensidade, localizando-se na região hipogástrica
e fossa ilíaca direita, acompanhada de febre.
Negava operações abdominais anteriores. Informava
que freqüentemente apresentava crises de
cólicas abdominais que requeriam medicação
antiespasmódica e em duas oportunidades o fizeram
procurar atendimento hospitalar, onde foi medicado. No
exame físico geral apresentava-se desidratado
++/++++, corado, febril (Tº37,8 ºC), pulso com 114 b.p.m. e
PA 130x90. Ao exame físico especial, o abdômen
estava distendido simetricamente era difusamente doloroso
à palpação superficial e profunda, com
descompressão brusca na região hipogástrica e fossa ilíaca direita.
Os ruídos hidro-aéreos encontravam-se aumentados e
com timbre metálico. Nos exames laboratoriais
havia leucocitose com neutrofilia e desvio à esquerda.
A radiografia simples do abdômen mostrava distensão
de alças delgadas, principalmente jejunais, com
níveis líquidos no seu interior. Observava-se ainda
presença de imagem radiopaca de limites mal definidos
em região hipogástrica, móvel em radiografias
realizadas nos diferentes decúbitos. A ultrassonografia
do abdômen detectou presença de segmento de alça
ileal com paredes espessadas e luz parcialmente
ocupada por concreção nodular de aproximadamente cinco
cm de diâmetro, hiper-refringente e produtora de
sombra acústica posterior. Demonstrava ainda presença
de pequena coleção bloqueada próxima a concreção
e líquido livre no fundo de saco. A
tomografia computadorizada (TC) total do abdômen não
mostrava litíase biliar e confirmava presença do
espessamento parietal segmentar no íleo proximal
acompanhando formação nodular, hipodensa e de conteúdo
denso, medindo 3,5 x 3,0 cm em seus maiores
diâmetros, apresentando imagem invaginante íleo-ileal (Figura
1- A e B).
AB |
Figura 1 A - Tomografia computadorizada do abdômen mostrando divertículo de Meckel contendo enterolito em seu interior com extrusão para a luz ileal (seta). B - Tomografia computadorizada do abdômen revelando enterolito no interior do divertículo de Meckel com processo inflamatório e formação de abscesso (seta) |
O íleo terminal, ceco e apêndice
vermiforme encontravam-se normais. Com o diagnóstico
de invaginação intestinal decorrente de divertículo
de Meckel complicado por enterolito, o enfermo foi submetido à laparotomia em que se constatou
presença de DM, a 50 cm da válvula íleo-cecal, com
sinais inflamatórios e abscesso peri-diverticular. O
divertículo possuía paredes espessadas, com secreção
fibrino-purulenta e interior preenchido por enterolito de
quatro centímetros de diâmetro, de superfície irregular
(Figura -2).
|
Figura 2 _ Espécime cirúrgico representado por segmento de íleo com divertículo de Meckel anteriormente ocupado por enterolito de 4 cm de diâmetro (seta). |
O enterolito estava parcialmente extruído
para luz do intestino delgado provocando obstrução local
e dilatação jejunal a montante (Figura-3).
|
Figura 3 _ Espécime cirúrgico representado por segmento ileal com divertículo de Meckel com enterolito que promovia obstrução luminar (seta). |
O exame intra-operatório da vesícula e
vias biliares era normal excluindo a possibilidade
de eventual íleo biliar. Optou-se então, pela
extirpação do segmento ileal acometido, de 15 cm de extensão.
O transito intestinal foi restabelecido por meio
de anastomose primária termino-terminal em plano
único extra-mucoso com fio monofilamentar de
polipropileno 4-0. No 5º pós-operatório o doente apresentou
abscesso intra-peritonial que requereu drenagem cirúrgica
por meio de punção percutânea guiada por
ultrassonografia. O doente evoluiu bem, recebendo alta hospitalar
no 17º dia de internação, encontrando-se bem quatro
anos após a operação.
DISCUSSÃO
O divertículo de Meckel é a
enfermidade congênita mais freqüente do intestino
delgado, atingindo cerca de 1 a 3% da população geral
1,8,9. Esta afecção atinge igualmente ambos os sexos,
porém, quando o DM se torna sintomático o homem
é acometido com maior freqüência
4.
O DM apresenta, na maior parte dos casos, curso assintomático e o diagnóstico usualmente é
feito quando surge algum tipo de complicação
10. Estima-se que em 4,2% dos casos a doença se torna
sintomática ao longo da vida11. As complicações descritas
na literatura por ordem decrescente de freqüência
são: obstrução intestinal, hemorragia,
inflamação, intussuscepção, perfuração, ulceração péptica,
neoplasia e formação de cálculos no seu interior
10-15.
A formação de cálculos no interior
de divertículos que acometem o intestino delgado
é complicação raramente descrita e a freqüência
desse evento é difícil de se
estabelecer2. Donaldson em
197816 revendo a literatura só pôde encontrar 50
casos descritos e Kusumoto et al.15 na avaliação de
776 doentes portadores de DM só detectaram a
presença de cálculos no interior do divertículo em apenas
dois (0,25%)15. Levantamento mais recente
apontou incidência de 10% de enterolito no interior de DM
17. Não obstante a raridade do evento, cabe destacar
que, em virtude do DM ser o divertículo mais
freqüentemente encontrado no intestino delgado, é também
o local mais comum de formação de
enterolitos10.
A formação de cálculos no interior do
DM possui etiologia e patogenia ainda
incertas6. A maior parte dos divertículos possui colo estreito e
parede intestinal com camada muscular pouco
desenvolvida. A deficiência de peristaltismo local e a
dificuldade de esvaziamento do conteúdo intestinal provocam
a estagnação do conteúdo ileal no interior do
divertículo 6,18. Fenômenos inflamatórios (diverticulite) e
edema obstruem o óstio de comunicação com a luz
ileal, aumentando ainda mais a estase local
19. A presença de corpos estranhos, tais como sementes, no
interior do divertículo podem se tornar o núcleo de
formação do cálculo. O depósito de cálcio, sais biliares
e colesterol na superfície desse núcleo central
levaria ao aumento progressivo do cálculo. O pH alcalino
do conteúdo intestinal parece favorecer o
processo litogênico no interior do divertículo
11,17. A ausência de enterolitos em DM com metaplasia gástrica
parece reforçar essas observações
11,17,19. Infelizmente não foi realizada a análise do enterolito no doente do
presente relato.
Obstrução intestinal é a complicação
mais prevalente do DM, podendo ocorrer em cerca de
35% dos seus portadores 20,21. Os mecanismos
mais freqüentes são: intussuscepção íleo-ileal, volvo,
hérnia interna, bridas inflamatórias, hérnia de
Littré, fitobezoares e torção do divertículo em sua base
8,10,22.
A obstrução intestinal conseqüente a
enterolito formado no interior do DM é evento extremamente
raro com somente 11 casos publicados até 2000
2,7,17,23-25. Ocorre em 10% dos casos em que existe a
formação de cálculo no interior do divertículo de Meckel
7. A extrusão do enterolito para o lume do intestino
delgado com posterior impactação distal é o mecanismo
da obstrução intestinal em nove dos casos
publicados 6,7,16,23-25. A obstrução pelo enterolito no
óstio diverticular pela extrusão parcial do cálculo e
obstrução local, à semelhança do caso que acompanhamos,
só foi anteriormente descrita em duas ocasiões
6,7.
A obturação intestinal por enterolito
primário de DM acomete predominantemente o sexo
masculino, surgindo de modo súbito, com os sinais clássicos
de obstrução intestinal caracterizada pela presença de
dor abdominal, náusea, vômitos, parada de eliminação
de gases e fezes e distensão abdominal
2. Os doentes geralmente negam episódios dolorosos
anteriores, contudo a semelhança do caso que
acompanhamos, podem queixar de cólicas abdominais repetitivas
6. O diagnóstico pré-operatório raramente é realizado
e habitualmente os doentes são encaminhados
a laparotomia diagnóstica.
A radiografia simples de abdômen revelou
a presença de cálculos no interior de
divertículos radiopacos em 88% dos casos
analisados retrospectivamente 17. Embora ela seja útil
no diagnóstico de obstrução intestinal e
ocasionalmente mostrar a presença do enterolito, esse exame
não permite afastar a presença de íleo biliar, que se
torna menos provável na ausência de aerobilia. Durante
a radioscopia a maior mobilidade do enterolito nas mudanças de decúbito nos casos de DM pode
auxiliar no diagnóstico diferencial
18. No caso ora descrito, a radiografia simples mostrou imagem radiopaca,
móvel nas mudanças de decúbito, além da presença
da distensão de alças intestinais com níveis líquidos.
A ultrassonografia do abdômen é mais
sensível, quando comparada à radiografia simples do
abdômen, para detectar a presença do enterolito. Entretanto,
em virtude da raridade da complicação, os
achados ultrassonográficos e tomográficos são
pouco conhecidos 17. No caso do presente relato,
a ultrassonografia revelou a presença de cálculo na
luz ileal, junto da parede intestinal que apresentava
sinais inflamatórios com formação de abscesso adjacente
ao cálculo, sem mostrar, contudo, a presença do DM.
A ultrassonografia, à semelhança da radiografia
simples de abdômen, não detectou presença de cálculos ou
ar na vesícula biliar, tornando pouco provável
a possibilidade de íleo biliar, o que foi
confirmado durante o inventário da cavidade abdominal
no momento da intervenção cirúrgica.
A TC é reconhecida como o exame de maior utilidade na detecção de cálculos no interior do
DM 11,17,24. No presente relato foi o exame diagnóstico
pré-operatório de maior utilidade, ao revelar a presença
do DM preenchido pelo cálculo e a obstrução ileal
pela extrusão do enterolito para a luz intestinal. A
TC mostrou, ainda, espessamento da parede intestinal
e do tecido adiposo adjacente, com formação de
pequeno abscesso devido ao processo inflamatório
diverticular. Pelo nosso conhecimento o exame só foi
utilizado anteriormente em quatro oportunidades
11,17.
A conduta operatória preconizada pela
revisão da literatura varia segundo a situação
encontrada. Quando existe a extrusão do cálculo para a luz
intestinal com impactação distal, sugere-se a ordenha distal
do cálculo em direção ao ceco. Se isso não for possível,
o enterolito poderá ser retirado através de
enterotomia em local da parede intestinal com menor
acometimento inflamatório7. A extirpação intestinal só deve
ser realizada quando existirem sinais de
inflamação, necrose ou perfuração do DM ou formação de
abscesso peri-diverticular. A ressecção intestinal envolvendo
o DM e o enterolito foi a conduta tomada na maioria
dos casos publicados em virtude das condições
loco-regionais 2,6,7,24,25, a exemplo do que ocorreu com
o enfermo do presente relato que apresentou
perfuração bloqueada e formação de abscesso local.
O acompanhamento do presente caso sugere que o diagnóstico de obstrução intestinal
provocada por enterolito formado em DM, deverá ser
considerado quando a radiografia simples de abdômen revelar,
além dos sinais clássicos de obstrução intestinal,
presença de concreção abdominal móvel nas
radiografias abdominais realizadas em várias posições.
Nessa situação a TC do abdômen poderá ser útil
no diagnóstico definitivo da complicação.
Agradecimento:
Ao Dr. Edson Iglésias Chefe do Serviço de Ultra-sonografia e Tomografia Computadorizada do Hospital e Maternidade
Brasil, Santo André, pela inestimável contribuição na interpretação dos exames de imagem utilizados neste trabalho.
SUMMARY: Meckel's diverticulum is the most common congenital anomaly of the gastrointestinal tract, occurring in around 2% of the population. The formation of calculi inside the diverticulum, provoking intestinal obstruction, is a rarely described complication. The objective of the present report is to present a case of intestinal obstruction due to partial extrusion into the intestinal lumen of an enterolith formed inside Meckel's diverticulum. A 37-year-old male patient with a history of long-duration cyclical abdominal colic developed a clinical condition of intestinal obstruction due to primary enterolithiasis of Meckel's diverticulum. This was confirmed by simple radiography, ultrasonography and computerized tomography of the abdomen. The patient was treated successfully by segmental intestinal resection with primary anastomosis. The authors have made a review of the pertinent literature, highlighting the main etiopathogenic, clinical, diagnostic and therapeutic aspects of this unusual complication of Meckel's diverticulum.
Key words: Diverticulum, Meckel's Diverticulum, Diverticulitis, Small intestine, Intestinal obstruction, Lithiasis.
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Endereço para correspondência:
Carlos Augusto Real Martinez
Rua Rui Barbosa, 255 apto. 32
09190-370 - Santo André (SP)
E-mail: caomartinez@uol.com.br
Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Geral do Hospital Universitário da Faculdade de Medicina da Universidade São Francisco, Bragança Paulista.