ARTIGOS ORIGINAIS


ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR DO OSTOMIZADO

Raimundo Nonato Bechara1, Marcelo Salomão Bechara1, cristiane de Souza Bechara1, Henrique Coelho Queiroz1, Rafaela Braga de Oliveira1, Rafael Souza Mota1, Laura de Souza Bechara Secchin1, Alfeu Gomes de Oliveira Júnior1

1Núcleo de Ostomizados de Juiz de Fora, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil


Bechara RN, Bechara MS, Bechara CS, Queiroz HC, Oliveira RB, Mota RS, Secchin LSB, Oliveira Júnior AG . Abordagem Multidisciplinar do Ostomizado. Rev bras Coloproct, 2005;25(2):146-149.

RESUMO: Os estomas intestinais alteram a fisiologia gastrintestinal, a auto-estima e imagem corporal, causando mudanças na vida laborativa, familiar, social e afetiva do ostomizado. Os estomas intestinais afetam também a vida sexual do ostomizado. Nosso estudo constou de uma entrevista a 59 indivíduos que freqüentaram reuniões no núcleo dos ostomizados de Juiz de Fora _ MG, durante os meses de outubro e novembro de 2003. O questionário foi elaborado por uma equipe multidisciplinar, que incluiu médico coloproctologista, enfermeiro estomaterapeuta, psicólogo e assistente social. O objetivo do presente estudo foi conhecer os diferentes aspectos da vida do ostomizado, avaliar a aceitação do estoma pelo paciente e o seu posicionamento frente à aquisição deste, e, ainda, avaliar o retorno do paciente às atividades pessoais, sociais e laborativas após a cirurgia. Concluímos que uma abordagem multidisciplinar oferece benefícios ao paciente, facilitando sua reabilitação, através da aceitação e adaptação à nova imagem corporal, e também favorecendo o auto-cuidado.

Descritores: ostomia; reabilitação; qualidade de vida

Introdução
O primeiro estoma bem sucedido foi uma colostomia realizada em uma criança com ânus imperfurado pelo doutor Duret em 1793. Em 1883, Vincent Czerny realizou o primeiro tratamento combinado para o câncer retal com a criação de uma colostomia. A colostomia em alça com bastão foi introduzida por Madyl em 1883, enquanto que a colostomia com duas bocas foi descrita por Block em 1892. Mayo em 1904 e Miles em 1908 descreveram a amputação abdomino-perineal com a criação de uma colostomia definitiva. A primeira ileostomia foi realizada em 1879 na Alemanha por Baum para o tratamento de um paciente com tumor obstrutivo de cólon.
    Colostomias e ileostomias estão indicadas no tratamento de uma série de doenças que incluem diverticulite, doença inflamatória intestinal, incontinência anal, trauma, megacólon, anomalias congênitas, colites e retites actínicas e câncer. A criação de estomas intestinais é comum no tratamento dos tumores colorretais, além de estar indicada em casos de obstrução por tumores pélvicos ou nas ressecções ampliadas.
    Uma colostomia pode ser um sério limitador da qualidade de vida. Os pacientes ostomizados enfrentam dificuldades, tanto físicas quanto psicológicas. Há questões psicossociais envolvidas na dinâmica desses pacientes, como a perda da integridade corporal, a violação involuntária das regras de higiene e a perda da função reguladora do esfíncter anal.
    A condição de ostomizado implica em mudanças no estilo de vida, daí a importância do processo reabilitatório ser implementado já na fase diagnóstica, visando restituir-lhe as atividades de convívio social e melhorar sua qualidade de vida diante do impacto de aquisição do estoma.
    O objetivo do presente estudo foi conhecer os diferentes aspectos da vida do ostomizado, avaliar a aceitação do estoma pelo paciente e o seu posicionamento frente à aquisição deste, e, ainda, avaliar o retorno do paciente às atividades pessoais, sociais e laborativas após a cirurgia.

MATERIAL E MÉTODOS
Foi aplicado um questionário objetivo com 25 perguntas a 59 indivíduos que freqüentaram as reuniões do Núcleo dos Ostomizados de Juiz de Fora, durante outubro e novembro de 2003.
    O questionário foi elaborado de forma multidisciplinar, com participação de psicólogo, enfermeiro estomaterapeuta, assistente social e médico coloproctologista, e visou avaliar o retorno às atividades normais após a cirurgia, a aceitação do estoma pelo paciente e posicionamento do paciente e de sua família em relação ao estoma. Tal formulário foi especialmente elaborado para o estudo, composto de questões fechadas tipo check-list.
    Os pacientes foram informados a respeito da natureza da investigação, mas não utilizamos consentimento informado. A participação ocorreu de forma voluntária.

RESULTADOS
O questionário foi aplicado a 59 integrantes do núcleo de ostomizados de Juiz de Fora, sendo 27 do sexo masculino e 32 do sexo feminino. Dentre eles, 77% apresentam idade igual ou superior a 51 anos, 19% entre 36 a 50 anos e apenas 4 % apresentam idade inferior a 35 anos. 62% são casados, 19% viúvos, 16% solteiros e 3% divorciados.
    As colostomias constituíram-se na grande maioria das derivações (88%). É importante ressaltar que todos os participantes deste estudo eram portadores de estomas intestinais, não tendo sido incluído nenhum paciente portador de urostomia. 39 pacientes são portadores de estomas permanentes e os demais de estomas temporários.
    Em relação ao tempo que o paciente é portador do estoma, 74% dos pacientes eram portadores a um tempo superior a um ano, e 26% a tempo inferior a um ano.
    Em relação à patologia de base, tumor de cólon e reto foi encontrado em mais de 60% dos entrevistados. Outras patologias encontradas incluem: doença intestinal inflamatória (5 pacientes), polipose familiar (2 pacientes), diverticulite (1 paciente), traumatismo (2 pacientes), obstrução intestinal (1 paciente), fistula reto-vaginal (3 pacientes). Os demais pacientes não souberam informar qual doença o levou a realizar a cirurgia de confecção do estoma.
    60% dos pacientes são plenamente esclarecidos sobre o motivo de realização da ostomia; 31% consideram-se satisfatoriamente esclarecidos e 9% não sabem porque tiveram que adquirir a colostomia.
    Apenas 12% dos pacientes relataram necessidade de familiares para realizar higiene e troca das bolsas. Os restantes 88% realizam o autocuidado.
    Ao serem questionados sobre a reação emocional ao estoma, 46% relataram que foi difícil no início, mas estão bem no momento e 54% relataram que aceitaram facilmente. Todos os pacientes tiveram apoio familiar necessário e consideraram este fato imprescindível para melhor aceitação da situação. Sobre a cirurgia realizada, 79% compreenderam que era algo necessário para preservar a saúde; 14% sentiram medo de morrer e 7% consideraram algo incômodo ou irreversível.
    Em relação às atividades de lazer, 49% dos pacientes retomaram totalmente às atividades, 38% retomaram parcialmente e 13% não retomaram e atribuem esse fato à insegurança (39%), problemas físicos (38%), dificuldade para higienizar a bolsa, vergonha e outros ( 23%)
    Retomaram totalmente suas atividades profissionais após a cirurgia 41% dos pacientes, 18% retomaram parcialmente e 41% não retomaram devido a aposentadoria (70%) ou licença medica, problemas físicos e problemas para higienizar a bolsa (30%).
    Retomaram totalmente as atividades sexuais após a cirurgia 24% dos pacientes, 40% retomaram parcialmente e 36% não retomaram e relacionam esse fato a problemas físicos (30%), vergonha (26%), problemas com o dispositivo (6%) ou não aceitação pelo parceiro (6%).Oito pacientes não responderam a essa pergunta.
    34% dos pacientes relataram que o estoma em nada mudou seu modo de pensar sobre a vida, 42% tentam viver de melhor maneira agora e 7% passaram a viver cada momento como se fosse o ultimo. 14% consideram que não vale a pena refletir sobre isso e apenas um paciente sente-se revoltado.
    Consideram que o estoma não impede a realização de atividades normais 53% dos entrevistados; 34% consideram que atrapalha pouco e 13% consideram que atrapalha e muito.
    Todos os pacientes reconhecem a importância do Núcleo dos Ostomizados na sua recuperação, principalmente porque tal Instituição permite a troca de experiências pessoais sobre o manuseio do dispositivo (50%), porque a convivência com pessoas na mesma situação ajudou a aceitar melhor (63%) e porque fornece suporte médico e técnico (40%).

DISCUSSÃO
Os estomas intestinais têm, basicamente, cinco indicações bem definidas :
- com a finalidade de desviar o trânsito intestinal em casos de traumas anorretais importantes ou em lesões inflamatórias importantes.
- obstrução intestinal baixa , para descomprimir o cólon.
- tumores do reto, quando é necessária a amputação do reto e colostomia terminal definitiva.
- proteção de anastomoses colorretais após ressecções (o desvio do trânsito não impede a deiscência da anastomose, mas sim as conseqüências da passagem de fezes pelo local)
- retites actinicas com estenose retal ou fistulas retovaginais.
    Tais derivações alteram a fisiologia gastrintestinal, a auto-estima e imagem corporal, causando mudanças na vida laborativa, familiar, social e afetiva do ostomizado. Este tem medo de sentir-se discriminado, de ser substituído e de perder sua independência. No presente estudo, observou-se que 51% dos pacientes não retomaram suas atividades de lazer ou retomaram apenas parcialmente, devido a insegurança, vergonha, ou problemas físicos. No aspecto familiar, todos os pacientes entrevistados em nosso estudo consideram imprescindível o apoio da família na sua recuperação. A reação dos familiares frente a um estoma pode minimizar ou maximizar as conseqüências do mesmo. Um importante papel no processo de reabilitação é desempenhado pela preparação da família dos pacientes antes da cirurgia, informando-se e explicando-se aos familiares o diagnóstico, prognóstico e planejamento terapêutico.
    Os estomas intestinais afetam também a vida sexual do ostomizado. A mudança física causada pela confecção do estoma pode afetar o desempenho sexual e a sexualidade do indivíduo. Em nossa casuística, observamos que 76% dos pacientes não retomam suas atividades sexuais ou retomam apenas parcialmente e atribuem a isso problemas físicos, problemas com o dispositivo, vergonha ou não aceitação pelo parceiro. Ou seja, os distúrbios da função sexual podem ser tanto de ordem subjetiva, relacionadas ao conceito de auto-imagem, ou de ordem orgânica, decorrentes de lesão nervosa no ato operatório.
    A reabilitação do ostomizado visa restituir-lhe as atividades de convívio social e melhorar sua qualidade de vida diante o impacto da aquisição do estoma. A primeira etapa desse processo deve ser a aceitação do estoma pelo paciente. Ele deve entender que o estoma foi confeccionado com o intuito de preservar sua saúde. Pudemos observar em nosso trabalho que os pacientes que convivem bem com seu estoma reconheceram que isso era algo necessário para a preservação da saúde.
    A assistência ao colostomizado / ileostomizado não requer somente ensinar-se ao paciente os cuidados de higiene e troca de bolsas de colostomia. É necessário um planejamento da assistência, uma abordagem multidisciplinar que inclua a participação de enfermeiro estomaterapeuta, assistente social, psicólogo e médico assistente. As visitas no pré-operatório visam, além de demarcar o local do estoma, preparar o paciente e a sua família e minimizar o efeito de castração causado pela mutilação cirúrgica. As visitas no pós-operatório têm como finalidade o ensino do autocuidado e encaminhamento ao Programa de Ostomizados.
    A reintegração social do ostomizado é facilitada se ele fizer parte do Programa de Ostomizados, que é mantido pelo serviço público, para aquisição dos dispositivos e seguimento ambulatorial. Tais associações permitem-lhe a convivência com outros ostomizados e colaboram para a melhor aceitação da nova imagem corporal e para o melhor entendimento da nova situação, além de lhe fornecer suporte técnico em como higienizar o estoma, trocar o dispositivo, estimulando sempre o autocuidado. No nosso estudo, observou-se que todos os pacientes consideram o Núcleo dos Ostomizados de extrema importância em sua recuperação.
    Concluímos, então, que diante das inúmeras repercussões na qualidade de vida dos pacientes ostomizados, uma abordagem multidisciplinar se impõe. Dessa maneira, cada profissional atua integradamente com os demais na sua área de atuação, somando-se benefícios ao principal alvo de nossos cuidados, o paciente. Dessa forma, sua reabilitação é facilitada, como também a aceitação da nova imagem corporal e a realização do auto-cuidado.

Agradecimentos
Agradecemos a colaboração do Núcleo dos Ostomizados, que permitiu a realização do nosso trabalho, em especial a Jo e ao Alfeu, que muito contribuiram para o nosso estudo.

SUMMARY: Intestinal stomies alter gastrointestinal physiology, self steem and body image which cause changes in the patient's work, social relationships, family and feelings. This pathology affects the sexual relationship as well. Our study was based on interviews with 59 stomized patients who attended meetings at stomized center in Juiz de Fora _ MG, from october to november of 2003. The questionary was elaborated by a multidisciplinary staff that included a coloproctologist, a nurse, a psychologist and a social assistent. The aim of this study was to find out the various aspects of the stomized patient's live and to evaluate the patient's acceptance of the ostomy and the return to his social life, work and personal activities after the surgery. We concluded that a multidisciplinary staff brings benefits to the patient since it facilitates the rehabilitation, by making easier the acceptance and adaptation to the new body image, and this also favours the self care.

Key words: ostomy; rehabilitation; quality of life.

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Endereço para correspondência:
Raimundo Nonato Bechara
Rua Padre Café, 68/800 Bairro São Mateus
36016-450 - Juiz de Fora (MG)
Email: raimundo.bechara@ufjf.edu.br 

Recebido em 25/04/2005
Aceito para publicação em 16/05/2005

Trabalho realizado no Núcleo de Ostomizados de Juiz de Fora-MG, através da Universidade Federal de Juiz de Fora