SEÇÃO DE GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR
ANGIOGÊNESE: O GATILHO PROLIFERATIVO
Mauro de souza leite Pinho1
1Hospital Municipal São José, Joinville, Santa Catarina, Brasil
RESUMO: Os grandes avanços ocorridos na área da biologia molecular têm possibilitado uma melhor compreensão dos mecanismos de carcinogênese. Dentre estes, destaca-se a angiogênese como o processo através do qual as células tumorais estimulam a formação dos novos vasos sanguíneos necessários para o fornecimento dos nutrientes essenciais para seu crescimento acelerado. Sabe-se hoje que a angiogênese resulta da liberação local pelo tumor de algumas proteínas com ação estimuladora para o desenvolvimento vascular, como o fator de crescimento fibroblástico básico (bFGF), a ciclo-oxigenase 2 (COX-2) e o fator de crescimento endotelial vascular (VEGF). Sucessivos estudos têm demonstrado uma significativa correlação entre os níveis séricos e teciduais destas proteínas e as características clínico-patológicas de diversos tumores, incluindo o câncer colorretal. Como conseqüência direta destes achados, a terapia anti-angiogência, baseada na inibição destas moléculas, representa hoje uma das mais promissoras linhas de estudo em oncologia, em especial através do desenvolvimento de drogas baseadas em anticorpos monoclonais, como bevacizumab, cujos estudos clínicos iniciais realizados no tratamento do câncer colorretal têm demonstrado resultados altamente promissores, apresentando melhoras significativas nos índices de resposta tumoral e sobrevida dos pacientes.
Descritores: Cancer colorretal, angiogênese, biologia molecular
Introdução
Sabemos hoje que, para que uma célula
evolua de seu estado normal até assumir as características
de uma célula neoplásica, é necessária a ocorrência
de uma série de mutações, envolvendo genes
que expressem proteínas cuja ação esteja relacionada
ao controle do ciclo celular. Caso esta ação seja no
sentido de estimular a divisão celular, estes genes são
genericamente denominados como oncogenes e caso
tenham por função inibi-la serão considerados como
genes supressores de tumor. Seja por função
anormalmente exacerbada dos oncogenes ou por inibição
dos supressores, o resultado será a obtenção de uma
célula que apresentará um ganho proliferativo em relação
às demais, tornando-se insensível aos estímulos
apoptóticos 1-4.
Entretanto, aparentemente isto não é
suficiente para que esta célula dê origem a um tumor com
volume detectável e capaz de ameaçar a vida do indivíduo.
Para que um determinado grupo de células consiga
manter um crescimento sustentado é necessário que exista
uma fonte de suprimento sanguíneo específico e constante.
Há muitas décadas foi percebido que os
tumores apresentam uma vascularização bastante
proeminente em relação aos tecidos normais. Estes achados
foram sempre considerados como uma conseqüência
do processo inflamatório decorrente das áreas focais
de necrose existentes na massa tumoral.
Existem suficientes evidências hoje de que
na verdade a presença desta vascularização exacerbada
é uma condição essencial para que ocorra o
desenvolvimento neoplásico. Isto se deve ao
desenvolvimento de microvasos a partir de células endoteliais
pertencentes a capilares situados próximos às células neoplásicas.
Embora os capilares sejam um tipo de
tecido universalmente presente em nosso corpo, sendo
sua extensão estimada em uma camada monocelular
que cobriria uma quadra de tênis inteira (equivalente a
1000 m2), são estes formados por células endoteliais
que podem ser consideradas entre aquelas que
apresentam um baixo ritmo de divisões celulares entre as
demais células do corpo, com um ciclo proliferativo
que compreende centenas de dias, enquanto as
células epiteliais, por exemplo, podem se dividir até duas
vezes ao dia.
Assim sendo, a presença de um
crescimento vascular acentuado em um tecido tumoral
demonstra dois aspectos bastante relevantes. O primeiro deles é
a existência de um forte estímulo para estas
células endoteliais, capaz de alterar seu estado
proliferativo normal. O segundo é a natureza local deste
estímulo, uma vez que tal proliferação irá ocorrer apenas
no segmento adjacente ao surgimento de um diminuto clone de células neoplásicas. A este
crescimento vascular localizado denominamos angiogênese.
Grande parte do mérito referente ao atual
estado de conhecimentos sobre a angiogênese deve ser
atribuída a Judah Folkman 5-6, o qual propôs no princípio da
década de setenta a importante participação do
desenvolvimento de microcirculação no processo de crescimento
tumoral. Já naquela época, Folkman antecipava o futuro ao
sugerir que uma importante linha de estudos na
terapêutica antineoplásica estaria relacionada ao
desenvolvimento de técnicas capazes de bloquear o surgimento
desta neovascularização, a fim de impedir o
crescimento tumoral.
Fase Pré-Vascular da Expansão Tumoral
Cerca de 95% dos tumores malignos humanos são carcinomas que se originam como diminutas
lesões in situ que podem ser encontradas em epitélios
como pele, mucosa gastrointestinal, bexiga, próstata,
mama ou colo uterino, podendo permanecer sem
sinais evidentes de crescimento durante anos.
Estudos demonstram que durante esta fase as células
neoplásicas poderão já apresentar uma atividade
proliferativa aumentada, não ocorrendo, no entanto, um
aumento do volume tumoral devido ao mecanismo
compensatório representado pela apoptose celular.
No caso particular do câncer colorretal,
este mecanismo se torna ainda mais evidente devido
à elevada incidência de lesões neoplásicas
intramucosas, também denominadas como pólipos adenomatosos,
os quais provavelmente em sua grande maioria
permanecem durante muitos anos com crescimento
virtualmente inexistente. Em alguns casos, no entanto, estes
pólipos podem evoluir para um comportamento biológico
mais agressivo, com crescimento rápido, com invasão
da parede intestinal e tecidos vizinhos.
Numerosos estudos realizados ao longo das últimas duas décadas demonstraram fortes
evidências de que esta modificação do padrão de
crescimento tumoral é dependente do desenvolvimento de
uma neovascularização específica, a qual ocorre
em decorrência de diversos fatores locais estimulantes
da angiogênese como a hipóxia e a elevação de CO2
ou óxido nítrico (Figura-1)
7-8 .
Figura 1 - Estímulos tumorais à angiogênese. (Adaptado de Miller K in Disrupting VEGF signaling,Astra Zeneca, 2002. |
Proteínas Relacionadas à Angiogênese
A presença dos fatores locais acima citados
irá desencadear um processo de liberação de
diversas proteínas, as quais atuam no processo de
angiogênese e de sua ação estimulante sobre o tecido
neoplásico (Figura-2). Estudos realizados utilizando o fator
de crescimento fibroblástico básico (bFGF)
9-11 demonstraram que, além de uma elevada ação
oncogênica, contribuindo para a transformação de
fibroblastos normais em neoplásicos, esta proteína
apresentava ainda uma grande capacidade de estimular o
processo de angiogênese, sendo ambos revertidos após
sua inativação pela adição de um anticorpo.
Figura 2 - Etapas da andiogênese. (Adaptado de Martin FS, in Bishop JM, Weinberg RA, 1996. Scientific American Molecular Oncology. Scientific American Inc: New York, p 29.) |
Estudos semelhantes identificaram outra proteína com potente ação angiogênica
denominada como fator de crescimento endotelial vascular
(VEGF), considerada de importante ação mitogênica
sobre células endoteliais 12-17 , a qual é hoje relacionada
a uma importante linha de terapêutica
antineoplásica, como veremos adiante.
Ao contrário da ciclo-oxigenase-1 (COX-1),
a qual é uma enzima usualmente expressa em
tecidos normais e envolvida em diversas funções celulares,
a ciclo-oxigenase-2 (COX-2) é uma proteína
expressa como resposta à presença de mediadores
locais liberados em conseqüência de vários estímulos,
fazendo parte de uma resposta inflamatória a estes. Além
disto, diversos estudos demonstram que sua expressão
nos tecidos colorretais está associada a fatores
angiogênicos e formação de novos vasos no processo de
carcinogênese 18-21 .
Posteriormente a estes agentes
considerados como angiogênicos, foram identificadas
algumas proteínas capazes de exercer ação oposta, como a
angiostatina e a endostatina, as quais inibiriam
a angiogênese ocorrida nos modelos experimentais
acima citados 22-23. É interessante notar que a ação
inibidora destas proteínas restringe-se apenas à
atividade angiogênica conseqüente à presença de
tecido neoplásico, não exercendo qualquer influência
negativa sobre a atividade proliferativa de células
endoteliais normais.
Angiogênese e Metástases
Existem fortes evidências de que a
angiogênese esteja relacionada não apenas ao
crescimento tumoral, desempenhando ainda uma importante
ação no processo de formação e desenvolvimento
de metástases. Estudos experimentais demonstram
ser bastante infrequente a formação de metástases
a partir de tumores primários antes do
desenvolvimento de neovascularização, ocorrendo no
entanto após esta uma facilitação da migração de
células neoplásicas através da circulação sanguínea.
Suportando estes achados, diversos autores referem
uma correlação positiva entre a microdensidade
vascular e o risco de desenvolvimento de metástases
em diversos tumores.
A proliferação vascular gerando uma rede
de capilares com paredes endoteliais fragmentadas
em meio a um tecido formado por células neoplásicas
com baixa adesividade entre si representa um fator favorecedor à penetração e migração celular
através da corrente sanguínea. Além disto, existem
evidências de que a capacidade destas células neoplásicas
de liberar fatores angiogênicos contribui para a
formação de metástases através da ativação de plasminogênio
e colagenases contribuindo para a degradação
da membrana basal endotelial.
Valor Prognóstico da Análise Angiogênica
dos Tumores
A partir das evidências mencionadas
acima, observa-se hoje uma grande atividade de
pesquisa buscando relacionar a presença de
fatores angiogenicos no tecido tumoral e seu
prognóstico. Este exame, realizado na maior parte dos casos
através de imunohistoquímica para a demonstração
de proteínas como a VEGF e bFGF, pode ser
realizado de forma rotineira em laboratórios de
anatomia patológica e apresenta, segundo muitos relatos,
um elevado valor prognóstico.
No que diz respeito ao câncer
colorretal, dispomos hoje de fortes evidências de que os
níveis tissulares e séricos de VEGF apresentam uma
significativa correlação com os diferentes aspectos
clínico-patológicos tumorais, como o tamanho da
lesão, presença de invasão vascular, presença de
metástases linfonodais, diferenciação tumoral e, em especial,
com o prognóstico do paciente observado através de
taxas de sobrevida após o tratamento.
Além disto, diversos estudos tem
demonstrado que a determinação dos níveis séricos de VEGF
pode ser utilizada como um importante marcador
tumoral, apresentando uma sensibilidade diagnóstica
superior à dosagem do antígeno carcinoembrionico
(CEA), incluindo um valor prognóstico pré-operatório e
uma forte correlação com o estado tumoral
pós-operatório ou de acordo com a resposta à terapia adjuvante.
Em relação à COX-2, sua utilização
como marcador prognóstico no câncer colorretal,
os resultados são ainda tema de controvérsia. Embora
os resultados obtidos em pesquisas nesta área sejam
ainda conflitantes, parece consenso na literatura que
a expressão desta proteína COX-2 está relacionada
à angiogênese e progressão da doença, sendo sua
inibição hoje um dos principios já utilizados na prática
clínica como elemento repressor da atividade proliferativa
da mucosa em pacientes portadores de polipose adenomatosa familiar.
Aplicações Terapêuticas Anti-Angiogênicas
A elevada consistência dos
conhecimentos acumulados até o momento sobre a importância
da angiogênese como fator primordial no
desenvolvimento tumoral levou à conseqüente proposição de
uma estratégia terapêutica anti-neoplásica baseada
no desenvolvimento de medicamentos capazes de
inibi-la, proporcionando uma redução do
crescimento tumoral.
Diversas substâncias têm sido
demonstradas como possíveis antagonistas à angiogênese,
atuando sobre as várias moléculas que atuam como
seus mediadores. Existem claras evidências, já há
alguns anos, de que os inibidores da COX-2 como o
celecoxibe e o rofecoxibe 20 possuem ação inibidora do
desenvolvimento de pólipos em pacientes portadores
de poliposes adenomatosas quando utilizados em
doses elevadas e por prazos prolongados.
Outros estudos têm demonstrado
resultados encorajadores através do uso da angiostatina
e endostatina como bloqueadores da angiogênese
e conseqüente redução do crescimento tumoral.
Embora ainda em sua maioria na fase experimental,
estes estudos têm ainda reforçado uma interessante
hipótese formulada por Folkman, através da qual
tumores primários, ao produzir estes fatores,
poderiam contribuir para a inibição do desenvolvimento
de metástases à distância. Desta forma, a ressecção
destes tumores iria levar a uma redução dos níveis
circulantes de angiostatina e endostatina, causando uma
liberação da proliferação celular nos tecidos metastáticos e
seu conseqüente crescimento.
Entretanto, dentre todas estas linhas terapêuticas, podemos hoje destacar o
desenvolvimento de um anticorpo monoclonal anti-VEGF como
a aplicação clínica mais bem sucedida até o
momento. Produzido comercialmente após rápida tramitação
pelo órgão de controle americano (FDA), devido a
seus resultados positivos bastante consistentes,
este medicamento, denominado como Bevacizumab (Avastin ®) é a primeira terapia aprovada com
ação específica na inibição da angiogênese
tumoral. Utilizada correntemente já na prática clínica, é
hoje considerada como droga de primeira linha na quimioterapia do câncer colorretal metastático
por apresentar benefícios significativos na sobrevida
e intervalo livre de doença quando associada a
outros medicamentos como o 5-FU e leucovorin,
irinotecan ou oxaliplatina 24-27 .
Assim sendo, existem fortes evidências de
que a determinação dos níveis de VEGF tornar-se-á
uma importante ferramenta na caracterização
do comportamento biológico tumoral. Além de
fornecer uma informação prognóstica para o paciente,
este procedimento representa o início de uma nova
e revolucionária etapa na história do
tratamento oncológico na qual a terapêutica será estabelecida
de forma individualizada, baseada na identificação
do perfil de proteínas expressas em cada
tumor, possibilitando a utilização de medicações
específicas mais eficientes e provavelmente menos tóxicas.
SUMMARY: Recent advances in molecular biology have contributed to a better understanding of mechanisms of carcinogenesis. Angiogenesis has been reported as a crucial process by the development of new tumour endothelial vessels with consequent proliferative stimulus mediated by expression of several proteins such as basic fibroblast growth factor (bFGF), ciclo-oxigenase-2 (COX-2) and vascular endothelial growth factor (VEGF). Several studies have demonstrated a significant correlation between tissue and serum levels of these proteins and clinical-pathological aspects in several tumours, including colorectal cancer. Inhibition of these molecules has been suggested as an anti-angiogenic therapy, which is undertaken by development of drugs based on monoclonal antibodies, such as bevacizumab. Clinical studies regarding the use of these drugs have shown very encouraging results, with significant benefit in tumour response and patients survival.
Key words: Colorectal cancer, angiogenesis, molecular biology
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Endereço para correspondência:
MAURO PINHO
Rua Palmares 380
Joinville, Santa Catarina
Cep. 89203-230
Trabalho realizado pelo Departamento de Cirurgia do Hospital Municipal São José, Joinville, Disciplina de Clínica do Departamento de Medicina da UNIVILLE
Recebido em 08/12/2005
Aceito para publicação em 15/12/2005