ARTIGOS ORIGINAIS


CIRURGIA DE HARTMANN - ANÁLISE DE 41 CASOS EM HOSPITAL DE REFERÊNCIA DO NORTE DO PARANÁ

Luciano Dias de Oliveira Reis _ TSBCP
Octaviano Augustus Lombardi
Adriano Dias de Oliveira Reis
Elaine Heidemann Cardoso
Celso Augusto Milani Cardoso Filho


REIS LDO, LOMBARDI OA, REIS ADO, CARDOSO EH, CARDOSO FILHO CAM. - Cirurgia de Hartmann - Análise de 41 casos em Hospital de referência do norte do Paraná. - Rev bras Coloproct, 2001; 21(1): 19-22.

RESUMO: A cirurgia de Hartmann é um procedimento cirúrgico de grande importância para o cirurgião do aparelho digestivo e do trauma. Consiste na ressecção do segmento colônico doente associado a uma colostomia proximal com fechamento do coto distal. A falta de segurança para a realização de anastomose primária por falta de preparo do cólon ou por condições não ideais do paciente constitui uma das suas principais indicações. Dois meses ou mais após o primeiro procedimento, realiza-se o fechamento eletivo da colostomia com anastomose colorretal, restabelecendo-se o trânsito anterógrado do aparelho digestivo.
   
Relatamos 41 casos de cirurgia de Hartmann, atendidos no Hospital Nossa Senhora da Saúde, em Santo Antônio da Platina, norte pioneiro do estado do Paraná. Em cinco pacientes, a cirurgia inicial foi realizada em outro serviço e nos trinta e seis pacientes restantes realizamos o procedimento inicial. Dos pacientes em que a cirurgia inicial foi realizada em outro serviço conseguimos reconstruir o trânsito em 4 dos 5 pacientes e nos 36 pacientes restantes fizemos a reconstrução em 25 deles. No grupo de pacientes nos quais tentamos a reconecção a mortalidade foi nula e a morbidade em níveis aceitáveis. Em 17 pacientes a reconstrução foi realizada por meio de anastomose manual, em 13 com o uso de anastomose mecânica e dentre esses, um por acesso videolaparoscópico.

UNITERMOS: Operação de Hartmann, anastomose colorretal, videolaparoscopia colorretal, reconstrução do trânsito intestinal.

INTRODUÇÃO
Em 1921, Hartmann ( 7 ) descreveu um procedimento cirúrgico que consistia da ressecção de segmento colônico sem anastomose primária, com fechamento do coto distal e abertura de colostomia proximal ao segmento ressecado. Na literatura mundial a cirurgia de Hartmann é indicada principalmente para casos de ressecção de carcinoma colorretal obstrutivo, diverticulite aguda (1,6) ou trauma colorretal (6,17); porém, em nosso meio acrescenta-se a doença de Chagas ( 6). Esse procedimento apresenta alto índice de complicações (1,16,17) quando comparado a trabalhos onde é realizada a anastomose primária, mas este é um grupo distinto, pois geralmente a anastomose colorretal primária é realizada em casos eletivos quando o paciente está em boas condições gerais e o intestino foi preparado pré-operatoriamente. Este fato diferencia os pacientes, não permitindo estudo comparativo.
    O objetivo deste trabalho consiste na avaliação das indicações e comentários sobre os resultados da cirurgia de Hartmann e da reconstrução do trânsito intestinal.

CASUÍSTICA
Entre fevereiro de 1982 e dezembro de 1999, atendemos a um grupo de 41 pacientes com cirurgia de Hartmann, no Hospital Nossa Senhora da Saúde, no norte pioneiro do estado do Paraná. As indicações para a realização da cirurgia foram as seguintes (tabela 1):

Tabela 1 - Número total de indicações para cirurgia de Hartmann
Indicações Número de casos
Megacólon chagásico 27
Diverticulite 6
Carcinoma colorretal 3
Lesão por arma de fogo 2
Colite isquêmica 1
Úlcera estercoral 1
Aneurisma de aorta fistulizado para cólon 1
Total  41

 

RESULTADOS
Dos 41 pacientes, realizamos a cirurgia de Hartmann em 36 deles. Em 11 dos 36 não tentamos a reconecção do trânsito digestivo. Destes, em um caso, houve óbito 12 horas após cirurgia de Hartmann associada à prótese aortoilíaca devido a rompimento de aneurisma de aorta para o cólon sigmóide, com infecção generalizada (14). Outro paciente, operado em novembro de 1999, com carcinoma de cólon perfurado, Dukes C, não deverá ter oportunidade de reconecção. Os outros 9 pacientes eram chagásicos. Destes cinco foram classificados como ASA m / IV e faleceram de problemas cardíacos ente 31 dias e 6 anos após o procedimento inicial. Um deles faleceu em sepse, com necrose perineal e osteomielite no 31° dia pós operatório e um teve colostomia fechada em outra cidade. Dois pacientes não conseguimos acompanhar, ambos idosos residentes em asilo de outros municípios.
    Nos 25 pacientes em que realizamos a cirurgia de Hartmann e posteriormente reconectamos o trânsito digestivo (Grupo I), 13 pacientes apresentavam megacólon chagásico, 6 apresentavam diverticulite, 2 com ferida retal por arma de fogo, 2 com carcinoma localizado na junção reto- sigmoideana, um com colite isquêmica perfurada e um com úlcera estercoral (tabela 2).

Tabela 2 - Indicações e número de anastomoses realizadas após cirurgias de Hartmann
Indicações Grupo 1 Grupo 2 total
Número de casos
Megacólon chagásico 13 5 18
Diverticulite 6 6
Lesão por arma de fogo 2 2
Carcinoma colorretal 2 2
Colite isquêmica 1 1
Úlcera estercoral 1 1
Total 25 5 30

    Nos pacientes cujo procedimento inicial foi realizado em outro serviço, todos eram portadores de megacólon chagásico e realizamos reconecção do trânsito digestivo com sucesso em 4 deles (80 %), sendo que em um paciente, o qual já possuía cinco cirurgias prévias, conseguimos realizar anastomose com stappler ILS 29 mas o paciente evoluiu com estenose da anastomose necessitando de colostomia proximal. Neste paciente foi tentada ainda outra reconecção em Campinas, sem sucesso.
    Não houve óbitos e como complicações pós-operatórias encontramos (tabela 3):

Tabela 3- Incidência de complicações pós-operatórias após reconecções de cirurgias de Hartmann
Complicação  Grupo 1 Grupo 2 Total
    N% N (%)    
Infecção do sítio cirúrgico 8 (32) 1 (25) 9 (30)
Deiscência anastomótica 2 (8) 2 (6.6)
Estenose anastomótica 1 (4) 1 (20) 2 (6.6)
Obstrução intestinal 1 (4) 1    

    

    No grupo 1, em 32% deles houve infecção do sítio cirúrgico, em dois pacientes houve pequena deiscência anastomótica que fechou rápida e espontaneamente ( 8%). Um paciente com diverticulite, cuja anastomose foi realizada com stappler ILS 32, apresentou estenose da anastomose que necessitou de dilatação (4%) e outro foi reoperado no 3° dia pós-operatório por obstrução intestinal por brida (4%). No grupo 2, um paciente evoluiu mal, com infecção de parede e estenose da anastomose que necessitou de nova colostomia. Em ambos os pacientes com estenose da anastomose foi usado o grampeador ILS 29. Adicionando os pacientes do grupos 1 e 2, a incidência da estenose da anastomose foi de 6.6% e de infecção de parede de 30%.

DISCUSSÃO
A operação proposta por Hartmann (7) para a ressecção de carcinoma de reto tomou-se uma técnica amplamente aceita para ressecção de cólon e ou reto quando não existem condições ideais para ressecção e anastomose primária. Atualmente as indicações foram ampliadas, como nos nossos casos, abrangendo a patologias diferentes (1,5,6,16,17,19). Porém, na maioria dos casos, continua sendo indicação de escolha nas emergências (1,19,20), principalmente pela falta de preparo intestinal ou por condições adversas como, por exemplo, peritonite, isquemia ou más condições gerais do paciente.
    O desenvolvimento das suturas mecânicas (9,10,11,13) e sua utilização nas reoperações facilitou a realização das anastomoses intestinais, aprimorando a técnica cirúrgica com consequente aumento do número de patologias passíveis de tratamento pela cirurgia ora descrita.
    Segundo Habr-Gama (6) as principais indicações na cirurgia de urgência são diverticulite perfurada com peritonite difusa ou fecal com o objetivo de eliminar o foco séptico e evitar a sutura primária (com os seus riscos); câncer do reto ou cólon sigmóide complicado por perfuração ou obstrução; politraumatismo abdominal pela falta de preparo intestinal, peritonite ou necessidade de resolução rápida; volvo de sigmóide com isquemia, perfuração ou presença de grande fecaloma. Há também indicação da cirurgia de Hartmann, eletivamente ou nas urgências, nos casos em que a anastomose tem grandes chances de fistulizar, como nas doenças inflamatórias intestinais (doença de Crohn, retocolite ulcerativa), proctite actínica ou colite isquêmica.
    A cirurgia de Hartmann apresenta mortalidade alta variando entre 7.6% (7) e 37.5% (16) principalmente porque é opção nos casos em que o estado do paciente é mais grave, apresentando peritonite com falência orgânica múltipla, isquemia intestinal, imunossupressão após transplantes, carcinoma obstrutivo do reto, volvo de sigmóide em paciente chagásico com comprometimento cardíaco e sem preparo intestinal (17).
    Totte (19) em seu grupo de 37 cirurgias de Hartmann, encontrou mortalidade geral de 30 % e relata haver diferença na mortalidade entre o grupo com diverticulite (33%), carcinoma (23%) e nos pacientes com trauma iatrogênico (100%). A causa mortis foi sepse em 82% dos pacientes.
    No nosso grupo de 36 pacientes nos quais realizamos a cirurgia de Hartmann, houve duas mortes por sepse (5.5%), uma imediata no paciente com rotura de aneurisma de aorta para o cólon sigmóide, 12 horas após colocação de prótese de aorta e ressecção intestinal à Hartmann (14), e outra tardia, no paciente falecido do 31° dia pós operatório com sepse.
    A reconecção do trânsito intestinal nos pacientes que sobreviveram à cirurgia de Hartmann, apesar de acompanhado por dificuldades técnicas, apresenta baixa mortalidade e morbidade aceitável (2,3,8,6,19), com excelentes resultados funcionais.
    Segundo vários autores (8,15), a cirurgia de reconecção do trânsito após cirurgia de Hartmann, é mais fácil de ser realizada entre 3 e 4 meses após a cirurgia inicial , apesar deste assunto ser controverso (2). Sempre que possível realizamos as nossas reanastomoses colorretais entre 3 e 4 meses após a cirurgia inicial .
    As dificuldades técnicas mais comuns estão relacionadas com a presença de aderências e com a identificação do coto retal. Múltiplas aderências podem tornar a cirurgia prolongada, com ocorrência de sangramento ou perfuração (iatrogênica) de alças aderidas. O coto retal pode estar sepultado sob aderências ou mesmo retraído por desfuncionalização. Para facilitar a identificação do coto retal, o suturamos com fio inabsorvível, longo, para facilitar sua identificação, ou, caso o coto seja longo, ele pode ser suturado na parede abdominal anterior .
    É importante relatar que, na nossa experiência, encontramos pouca aderência na cavidade abdominal por ocasião de reconstrução do trânsito intestinal, quando a primeira cirurgia realizada foi a de Hartmann, ao contrário, havia muito mais aderências quando a cirurgia de Hartmann foi indicada para corrigir complicações do procedimento cirúrgico inicial.
    Com o advento e disseminação da técnica de anastomose mecânica (4,9,11,13) o manejo do coto retal ficou mais fácil, principalmente quando o coto apresenta-se curto. Na técnica convencional o tempo cirúrgico da anastomose manual é tedioso, longo e dificil. Com o uso do grampeador intra-luminal, o coto retal é perfurado pela haste do aparelho, sem a necessidade da sutura em bolsa evitando-se o tempo mais dificil da anastomose colorretal pós cirurgia de Hartmann. Além disso, é factível o uso desta técnica através da videolaparoscopia (4,12,18) .No nosso grupo de pacientes, 13 anastomoses foram realizadas com uso de grampeador intra- luminal, sendo que em um deles através de acesso videolaparoscópico. Entretanto, segundo vários autores, não existe diferença nos resultados entre as anastomoses manuais ou mecânicas (9,11,20) .
    Nos nossos pacientes, a realização de anastomose manual foi maior nos primeiros anos de nossa prática, pois era dificil conseguir o grampeador para pacientes do SUS. Em dois casos, ambos após complicação da cirurgia de Cutait, um deles com retração do cólon abaixado e em outro devido à dificuldades técnicas per operatórias, a anastomose manual seria tecnicamente muito dificil no coto retal curto e retraído. Felizmente a anastomose mecânica permitiu que realizássemos a anastomose colorretal com sucesso, 3 meses após o procedimento inicial.
    Atualmente com a disponibilidade do uso dos grampeadores pelo sistema único de saúde, temos usado deste recurso com mais frequência.

CONCLUSÃO
A cirurgia de Hartmann é uma técnica simples e efetiva tanto em cirurgia colorretal de urgência quanto eletiva, quando não há segurança para a realização de anastomose primária. No nosso estudo a reconecção do trânsito intestinal tem sido realizada com morbidade aceitável e mortalidade nula nos pacientes em que as condições cirúrgicas estão mais favoráveis em relação à cirurgia inicial. Esse procedimento tem sido facilitado com o uso dos grampeadores mecânicos.

SUMMARY: Hartmann's procedure is an important technique for the trauma and colorecta1 surgeon. It is indicated when the bowel is not clean for the anastomosis, or when the patient's condition does not a1low the surgeon to proceed to a major colorecta1 anastomosis or due to peritonitis and septicemia and multiple organ failure or due to local difficulties.
   
It is possible to restore the gastrointestinal transit , usually two months after the initial Hartmann ` s operation with acceptable morbidity and very low mortality.
   
We report the fate of 41 patients submitted to Hartmann's procedure in a community hospital in the Northestem of Paraná State. In 30 patients we attempted a late colorectal anastomosis, 17 manually and in 13 using stapling technique, with no mortality and very low morbidity.

Key words: Hartmann's procedure, colorectal anastomosis, colorectal videolaparoscopy, large bowel reconstruction.

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Endereço para correspondência:
Luciano Dias de Oliveira Reis
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Santo Antônio da Platina, Paraná.