OPINIÕES E REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
JÚLIO CÉSAR MONTEIRO DOS SANTOS JR. - TSBCP
SANTOS JR.JCM _ Peritonite _ Infecção Peritoneal e Sepse - Rev bras Coloproct, 2001; 21(1): 33-41.
RESUMO: A infecção intra-abdominal generalizada é das mais temíveis complicações pós-operatórias em
coloproctologia.
Antes do reconhecimento precoce dessas complicações e da agressiva terapêutica cirúrgica, 90% dos pacientes morriam de
"sepse". Nas primeiras décadas desse século, a taxa de morte por causa das peritonites generalizadas graves caiu para 40-50%, fato
creditado, exclusivamente, ao procedimento
cirúrgico12,79. O advento aos mais-potentes antimicrobianos, nas décadas seguintes, não foi
suficiente para continuar diminuindo a incidência da morte. O perfil muda, no entanto, a partir do início dos anos 80, com novas técnicas e
táticas operatórias, com os novos conhecimentos sobre a fisiopatologia das infecções localizadas e de suas repercussões sistêmicas graves
e dos suportes de terapia intensiva. A identificação dos ciclos de eventos de etiologia variada, que culmina com a síndrome da
reação infamatória sistêmica tem sido fator decisivo na orientação da terapêutica, apontando para o mais-precoce diagnóstico e a mais
agressiva abordagem, cujo intuito é impedir a cascata das reações inflamatórias que quando excessiva provoca, de forma irreversível,
danos teciduais e a falência orgânica múltipla.
Unitermos: complicações infecciosas, operações coloproctológicas, peritonite
As complicações pós-operatórias das afecções do
intestino grosso são inerentes, dentre outros fatores, ao
porte do ato operatório, aos tipos mais comuns de doenças
que comprometem o intestino grosso, cujo tratamento
recomendável obriga a extirpação segmentar ou total dos
cólons, e à idade dos pacientes. As complicações mais
comuns são, sem dúvida, as infecciosas. sejam elas as
da ferida cirúrgica, superficial ou profunda, ou as
distantes, como as pneumonias e as infecções urinárias.
Em geral, essas infecções da ferida cirúrgica
respondem por 38% das infecções hospitalares, sendo 2/3
delas superficiais e as restantes, profundas. Para maior idéia
da gravidade do problema, vale assinalar que quando os
pacientes hospitalizados morrem, 77% das mortes são
devidas à infecção e a maioria (93%) trata-se de infecção
grave comprometendo órgãos ou espaços profundos
atingidos durante o ato
operatório1.
Há um conjunto amplo e complexo de elementos
que são apontados como facilitadores dessas infecções e
que são denominados fatores de risco. Esses fatores de
riscos têm significado particular no contexto dos
estudos epidemiológicos, na fisiopatologia e na prevenção das
infecções, mormente as cirúrgicas. São variáveis que
têm significativas e independentes associações com o
desenvolvimento das complicações infecciosas após um
determinado tipo de operação e podem ser encontradas nas
características dos pacientes (infecção preexistente ou
colonização, diabetes, tabagismo, obesidade, uso sistêmico
de esteróides, idade avançada, precário estado
nutricional, transfusão sanguínea peroperatória, permanência
hospitalar pré-operatória, etc.); nas características dos
arranjos pré-operatórios (banho, remoção dos pêlos, preparo da
pele na região que vai ser incisada, lavagem das mãos do
pessoal que pertence à equipe cirúrgica, antibioticoprofilaxia,
etc.); nas características do ato operatório (com especial
destaque para a técnica cirúrgica, mas envolve também, o
ambiente físico do palco cirúrgico, a ventilação, a
temperatura, outros detalhes arquitetônicos do bloco, e as técnicas
de assepsia e anti-sepsia e de esterilização) e, por fim,
nas características inerentes aos cuidados médicos e de
enfermagem no
pós-operatório1.
Não é incomum que todos esses fatores possam,
como fruto de análise global, ser aceitos sem contestação.
Contudo, entre outros: diabetes, tabagismo, desnutrição,
uso de esteróides, transfusão de derivados do sangue, etc.,
são temas geradores de
controvérsias2-9. Ainda assim,
todos eles são levados em consideração quando intentamos
fazer prevenção das complicações infecciosas
pós-operatórias endereçando inquestionável repercussão sobre a
qualidade final da terapêutica cirúrgica, além da desejável
redução do custo global do tratamento.
Nas operações cirúrgicas sobre os órgãos
intraperitoneais, a mais grave complicação infecciosa é a
peritonite pós-operatória ou secundária. Trata-se de afecção
gravíssima principalmente quando a víscera responsável é o
intestino grosso, potencialmente fatal, com altos índices
de mortalidade, a despeito do progresso na área do
diagnóstico, das opções terapêuticas em termos de tática
cirúrgica, do rico e disponível arsenal de antibióticos, dos
recursos mecânicos de manutenção de funções básicas em
unidades de terapia intensiva e do desenvolvimento de
técnicas de alimentação enteral e
parenteral10-15.
O maior de todos os recursos contra é, na
realidade, por meio de métodos preventivos, não ter que enfrentar
a situação caracterizada pela sepse abdominal que
pode, eventuàlmente, se desenvolver de uma peritonite
secundária e se estender para um distúrbio inflamatório
sistêmico irreversíve1.
As infecções intraperitoneais, em geral, podem se
manifestar de duas maneiras distintas,quanto ao seu
significado inicial, sua expressão clínica e consequências imediatas.
Elas podem, dependendo da causa, ficar localizadas
e formar os abscessos ou serem difusas e, nesses casos,
em geral com expressão sistêmica grave. Elas podem ser
decorrentes de perfurações de vísceras ôcas _ principalmente
os intestinos _ ou se desenvolver por causa de vazamento,
nas deiscências de anastomoses. É útil que se tenha em
mente, então, que vários fatores concorrem para a evolução do
processo infeccioso e, dentre eles, os mais importantes são:
em primeiro, o grau de contaminação inicial que pode ser
leve, médio ou grave; depois, o agente contaminante a fonte
fornecedora dos agentes infecciosos pode ser o estômago,
o duodeno ou segmentos do intestino grosso e, finalmente,
o momento da infecção cuja ocorrência pode se dar durante
o ato cirúrgico ou no pós-operatório imediato.
Os conhecimentos atuais referentes à fisio.patologia
das infecções intraperitoneais e sua evolução que pode ou
não culminar com a sepse permitem, então, a classificação
das infecções
abdominais15, como exposto na tabela 1.
Tabela 1. Classificação das infecções abdominais
Classe | Descrição | Agente etiológico |
primária | Infecção peritoneal difusa de fonte extra-abdominal; vísceras íntegras | monomicrobiana |
secundária | Resulta de afecção intra-abdominal, do tipo infeccioso ou não devido à necrose ou perfuração de órgão intra-abdominal | polimicrobiana |
terciária | Forma difusa e persistente de peritonite secundária, infecciosa ou não. | polimicrobiana ou não |
As duas classes - secundária e terciária - de
infecção intra-abdominal são os alvos de nossos interesses.
A classificação exposta justifica-se pela diferença
que há entre infecção e sepse. Os termos, pelo que
significam, estão relacionados - sepse significa uma forma de
resposta inflamatória sistêmica que inclui, também causas não
infecciosas e tem sido usado como denominador comum
para eventos de catastróficas perturbações fisiológicas tais
como: a sepse, propriamente dita, o choque séptico,
disfunção orgânica e o quadro que culmina com a morte, em
geral vistos em paciente cirúrgicos ou politraumatizados
gravemente enfermos16.
A reformulação de conceitos surgiu em decorrência
de observações de que alguns pacientes morriam em
sepse sem um foco infeccioso determinado.
O fenômeno foi denominado de "sepse não
bacterêmica"17, além de outras denominações sugestivas
como: sepse sem bactéria18, insuficiência orgânica
hipermetabólica19, resposta sistêmica à
sepse20,21 ou síndrome da falência da resposta
orgânica22.
Essas terminologias decorreram da busca de um
lugar comum que definisse eventos que teoricamente tinham
origens diferentes mas, na prática, as mesmas
expressões fisiopatológicas.
O que é denominado de sepse tem os mesmos
sinais clínicos das respostas sistêmicas aos mais variados
tipos de estímulos nocivos, como trauma, queimaduras ou
infecções graves e, esses sinais, são representados
por: taquicardia, taquipnéia, dinâmica
circulatória alterada, atividade metabólica exagerada, retratando um estado de
excessiva atividade sistêmica, além de complexas
alterações no âmbito celular. A resposta sistêmica, então
denominada de "síndrome da reação inflamatória sistêmica", pode
ter como fator desencadeador qualquer tipo de agressão ou
de infecção, não importando o agente
etiológico20,24, podendo continuar a despeito do controle do fator causal 2,23.
O fenômeno, que pode ser predecessor da morte, decorre
da magnitude da resposta do organismo e não depende
da presença de um microorganismo invasor, nem de suas
características biológicas e nem de sua erradicação. A
cascata de eventos reativos se assemelha ao que
denominou Paul Ehrlich e Johann Morgenroth25, em 1901, de
"horror autotoxicus"; termo criado para dar expressão à
destruição que uma reação autoimune poderia produzir. A
reação inflamatória, como resposta inespecífica
ou desencadeada pela infecção, necessária como evento
protetor, pode, em determinadas circunstâncias,
determinar, portanto; a falência orgânica
múltipla26.
A sepse representa uma resposta imune exagerada
que produz uma inflamação auto-destrutiva generalizada.
Esse novo conceito, que não implica necessariamente na
infecção continuada27, é subsidiado por conhecimentos
referentes à biologia molecular que esclarecem - por
meio da cadeia endógena dos mediadores pró-inflamatórios
e da sequência de ativação dos leucócitos no endotélio -
o intrincado mecanismo biológico de sua expressão
clínica e dos irreversíveis danos teciduais
causados28,29. Assim, sepse e síndrome da reação inflamatória sistêmica
são lugares comuns de eventos que-podem ter etiologias
diversas.
A exposição desses conceitos, que não é o objetivo
desse manuscrito, tem implicação clínica e terapêutica
quando estamos lidando com "sepse" de origem abdominal.
Peritônio - Cavidade-peritoneal - Peritonite (secundária e terciária
- "sepse" abdominal)
Peritônio
O peritônio - dividido em parietal e visceral - é
uma membrana serosa formada por uma única camada de
células mesoteliais sustentadas por um tênue estrato de
tecido fibro-elástico rico em agregados de tecido
linfo-reticular composto por linfócitos e macrófagos. O tecido
fibro-elástico de sustentação é rico em fibroblastos,
histiócitos, mastócitos e linfócitos, mas a irrigação da
membrana peritonial é escassa.
O peritônio parietal é um saco aberto,
principalmente na região diafragmática (aberturas intercelulares
denominadas de estomas -stomata -via primária de absorção
de partículas ou bactérias da cavidade peritoneal).
O peritônio visceral -cobre todas as vísceras
intra-abdominais e seus respectivos "mesos" e, sobre elas,
confunde-se com as serosas _ compreende a maior - parte
da superficie da membrana. Não fosse pelas trompas
de Falópio, o peritônio visceral seria um saco
completamente fechado. Esse saco está dividido em duas cavidades:
uma grande que é a cavidade peritoneal geral e outra menor
que é denominada de pequeno saco. Essa cavidade é
supramesocólica à direita e está isolada da grande cavidade, com
a qual se comunica pelo hiato de Winslow.
O peritônio parietal é inervado por aferentes
somáticos e viscerais e, com extrema sensibilidade, responde a
vários estímulos. Tem diferenciada habilidade para
localizar estímulos dolorosos e, quanto a isso, se assemelha à
pele, exceto na superficie que recobre a pelve, onde ele é
menos sensível.
O peritônio visceral é inervado apenas por aferentes
do sistema nervoso autônomo com respostas,
principalmente, a estímulos de tração ou distensão que traduzem
sensação de desconforto, mal localizado. A mais rica inervação
do peritônio visceral está localizada na raiz do mesentério e
na árvore biliar extra-hepática.
A membrana peritoneal tem uma vasta superfície
(2m2) e função biológica importante, de transporte
(convecção: uréia e creatinina e difusão: eletrólitos) que pode ser
perturbada por drogas, inflamação e infecção, em geral,
afetando o fluxo sangüíneo e a área
funcional efetiva.
Resposta ao trauma
A superficie peritoneal responde à lesão com
reação inflamatória inespecífica, de forma idêntica a qualquer
outra estrutura do organismo. A resposta peritoneal à
agressão é comparável à resposta inflamatória sistêmica e
usa idênticos mecanismos de interação humoral e celular
associada à exagerada produção local de citocinas
pró-inflamatórias tais como o fator de necrose tumoral
(TNF-a), interleucinas (IL-l, 2 e 6) e outras, além da liberação
de histaminas pelos mastócitos peritoneais, em quantidade
que depende da gravidade da lesão e destruição da
superficie mesotelial. Em geral, sua produção determina
concentrações superiores aos níveis sistêmicos, dosados
simultaneamente, com significado de gravidade que é
inversamente proporcional à
sobrevida30-32. No início, há aumento
da permeabilidade vascular com exsudação de plasma rico
em proteínas, contendo fibrinogênio, para a cavidade. A
resposta normal permite rápida recomposição da
membrana sem a formação de aderências. Essas são secundárias
a um tipo específico de injúria e tem como base a hipóxia
ou a isquemia, a lesão da superfície subperitoneal, a
contaminação e a infecção do peritônio além da presença de
corpo estranho, constituindo o que denominamos de peritonite.
Inflamação Peritoneal
O processo inflamatório ou infeccioso, então, que
acomete, de forma localizada ou generalizada, a
membrana-peritoneal é denominado peritonite.
Os elementos causais são vários e os resultados
finais dependem, menos deles, da intensidade da agressão,
da persistência e do tipo de reação local, mas muito mais
de fatores individuais.
A agressão intra-abdominal provoca uma seqiiência
de respostas envolvendo a membrana .peritoneal, os
intestinos, os compartimentos dos líquidos orgânicos
com subsequentes respostas cardíacas, respiratórias,
renais, neuroendócrinas e metabólicas. As respostas cardíacas
e respiratórias são as mais precoces.
A peritonite, principalmente a generalizada,
supurativa ou não, desencadeia um processo complexo de
reações inflamatórias locais e sistêmicas cuja gravidade
depende mais de fatores relacionados ao hospedeiro do que
ao agente agressor.
O aspecto mais grosseiro da reação ao insulto é
expresso pela triade rubor, calor e dor. A
congestão vascular e a dilatação são pronunciadas o que
sustenta a intensa transudação seguinte. Na fase inicial
da peritonite o processo de absorção aumenta para
diminuir, posteriormente.
A irritação do peritônio visceral tem como
resposta imediata a dor visceral, que é de caráter difuso, mal
definida, -e uma transitória hipermotilidade gastrintestinal
que, após curto intervalo, torna-se progressivamente
deprimida e, logo, abolida. As conseqüências imediatas desse
fenômeno entendido como de defesa, são a
indesejável distensão dos intestinos provocada pelo acúmulo de
líquidos e de gases para o lúmen intestinal (esses
derramados para o interior das alças por causa do íleo e
aqueles, deglutidos ou resultantes do metabolismo bacteriano
sobre o conteúdo intetinal parado). Os líquidos e gases,
acumulados, provocam a distensão, aumento da pressão
no interior das alças, aumento da pressão na parede
intestinal, impedimento relativo para a circulação, hipóxia
de estagnação ou, eventualmente,
isquemia. Essa sequência de eventos só faz por aumentar o
edema da parede e a seqüestração de maior quantidade de líquido o que
contribui, substancialmente para a pronunciada
diminuição do volume do líquido extracelular. Soma- se a isso a
farta "produção" de água rica em proteínas e eletrólitos,
pela membrana peritoneal inflamada que, quando
extensamente comprometida, contribui com o acúmulo regional de
cerca de 4 a 6 litros de líquido, em 24 horas.
A irritação do peritônio parietal, além de todas as
alterações mencionadas para o segmento visceral, é
acompanhada pela dor, então, bem localizada e de precisa
definição que repercute na função da musculatura estriada
da parede abdominal.
A inflamação da membrana peritoneal, a dor, a
resposta intestinal (íleo paralítico, a distensão e o
"derrame" de líquido para a luz) e a
hipovolemia são respostas primárias à peritonite. Concomitantemente,
surgem as respostas cardíacas e respiratórias;
neuroendócrinas, renais e metabólicas. Essas últimas de magnitudes
que nem sempre guardam relação direta com a
magnitude do fator causal. Tal como ocorre nas incidências de
infecções pós-operatórias de operações eletivas de
grandezas e riscos que obrigam o uso profilático de
antibióticos, os dados apontam para fatores de resistência
- locais e sistêmicos - e para o impacto do trauma
operatório sobre as barreiras "fisicas" e imunes do
paciente, como sendo eles os principais determinantes das
referidas complicaçõesl3.
Peritonite pós-operatória ou peritonite "secundária"
ou peritonite "terciária"
A peritonite "secundária" pode ter como origem
um foco abdominal primário, infeccioso (apendicite,
diverticulite) ou não (pancreatite), ou ser decorrente a uma
afecção abdominal secundária à complicação de um
procedimento cirúrgico primário que não envolveu, necessariamente,
uma doença infecciosa. É de consenso entre alguns autores
que a peritonite pós-operatória é mais grave
10-14,33, embora nem sempre isso seja
observado34-36.
Manifestações Clínicas
As manifestações clínicas habitualmente vistas
nas peritonites devidas a processo inflamatório ou
infeccioso intra-abdominal primário (peritonite secundária a
uma afecção abdominal primária) não se repetem com as
mesmas características e dimensões quando se trata da
peritonite que se manifesta no pós-operatório.
Além das alterações traumáticas e fisiológicas locais,
a agressão cirúrgica desperta, dentro da reação orgânica
(neuro-endócrina e metabólica), um significativo efeito de
supressão sobre a função imune, de tal modo que a situação
pós-operatória é, de um modo geral, de anergia,
demonstrada, inclusive, no meio
celular37-40. Este assunto, que merece
particular consideração, tem sido motivo de várias
investigações clínicas e laboratoriais nas últimas duas décadas,
principalmente por causa do grande impacto que teve a
profilaxia antimicrobiana sobre a taxa de infecção pós-operatória,
mas sem o poder de continuar diminuindo sua incidência na
mesma progressão em que foram aparecendo os antibióticos
de 3a. e 4a. gerações, nos anos
seguintes41,42. Aliás, essa
figura sempre foi observada em todas as décadas imediatas à
descoberta dos antibióticos e sua aplicação para proteger o
paciente cirúrgico contra a infecção.
O desenvolvido interesse voltado para o aspecto de
resposta do organismo às agressões inflamatórias que
sucedem à infecção, mormente nas situações que
caracterizam o comprometimento peritoneal no pós-operatório,
devem-se, principalmente à necessidade de se reconhecer
um marcador inicial que pudesse, em primeiro lugar, permitir
o diagnóstico precoce e, em segundo, ser indicador do
prognóstico. Por exemplo, parece haver respostas precoces
variadas ocorrendo entre os linfócitos, antes de qualquer
sinal clínico, quando se compara grupo de pacientes que
se recuperarão sem complicações, com os que
desenvolverão infecção ou entre os que morrerão. Esses dois últimos
grupos serão marcados por uma precoce redução no
número dos linfócitos T ("helper" e supressores ), no terceiro
dia da agressão, muito maior do que a observada entre os
pacientes do primeiro grupo, antes que haja qualquer
sinal clínico de infecção comprometendo as
membranas peritoneais. As alterações observadas na população
dos línfócitos T, ocorrendo antes do curso clínico da
infecção, parecem mais representar uma disfunção imunológica
do que o quadro clínico da própria
sepse40,43.
Ao longo da década de 80, vários métodos foram
desenvolvidos não só para classificar o estado clínico do
paciente operado e posteriormente acometido de infecção
grave, como também para a avaliação prognóstica da
situação em um dado instante, para quantificar a
gravidade, monitorizar o curso da doença séptica, comparar
populações de pacientes em estudos clínicos controlados;
entender o significado da falência de um, dois, três órgãos;
entender o significado de duas diferentes associações de
órgãos falidos, enfim, para poder comparar e mostrar
índices de morbi-mortalidades resultantes de complicações
pós-operatórias ou traumáticas e as consequências de vários
e diferentes tipos de tratamentos e suportes
intensivos44-50.
A adequada aplicação desses métodos serve
como ensinamento: com um método de gradação, tal
como APACHE II, para valores inferiores a 15, o índice de
mortalidade não ultrapassa 5%; mas para valores de
gradação acima de 15, a taxa de mortalidade ultrapassa 47%. Se
há falência de apenas um órgão, o índice de óbito pode
ser zero; 4 órgãos falidos, a mortalidade vai acima de
90%. Tão ruim é a associação de peritonite
generalizada, trombocitopenia (plaquetas <
60.000/mm3) e diabetes. A não resolução da causa da peritonite na primeira
abordagem cirúrgica não é determinante significativo de
maior índice de mortalidade, desde que as reoperações sejam
regularmente programadas36. Os pacientes que têm suas
doenças abdominais definitivamente resolvidas em uma
primeira operação, mas que evoluem de forma
insatisfatória e acabam sendo reoperados têm índices de mortalidade
10 vezes superiores aos que tiveram suas doenças
resolvidas de primeiras
instâncias36. Koperna e
col.36 observaram que o prognóstico de uma peritonite está decisivamente
influenciado pelo estado de saúde do paciente no início do
tratamento e por qualquer fator concomitante de risco.
Contudo, nenhum desses elementos sejam os
oriundos do conjunto de dados obtidos da leitura de parâmetros
pré-estabelecidos ou de valores obtidos de formulação
matemática para a composição de escalas, dos de
dosagens laboratoriais ou os da transformação de dados de
avaliação clínica em valores numéricos têm valor de aplicação
prática fácil, muito menos servem para o diagnóstico
precoce ou como definitivo orientador de condutas
subsequentes. Diagnosticar a infecção peritoneal pós-operatória
emergente com base nas alterações de parâmetros bioquímicos e
fisiológicos denunciadores da reação inflamatória sistêmica
já iniciada é estar fazendo um programa de trabalho
fadado ao sucesso.
O maior de todos os recursos disponíveis, em se
tratando de peritonite pós-operatória, é, na realidade, o da
antecipação, o do reconhecimento precoce do processo
infeccioso emergente que evite ter que enfrentar a situação
caracterizada pela sepse abdominal prestes a desencadear
um distúrbio inflamatório sistêmico irreversível.
No pós-operatório das operações cirúrgicas sobre
os órgãos abdominais, os mais precoces sinais são que
podem ser registrados pelas alterações das dinâmicas cardíaca
e respiratória. Não é para esperar que a febre presente, a
dor abdominal, o íleo prolongado, a desidratação persistente,
a palidez cutâneo-mucosa, o desânimo, a anorexia
formem o conjunto denunciador. Eles pertencem à
síndrome sistêmica da reação.
A reação aos insultos orgânicos passa por duas
fases diferentes e antagônicas que se equilibram ou se anulam
e compõem duas síndromes, segundo a hipótese de
Bone51,52. A primeira é a síndrome da reação inflamatória
sistêmica (fase pró-inflamatória), com produção de TNF , IL-l e
IL-6, e a segunda é a síndrome da resposta
antiinflamatória compensatória (fase antiinflamatória) com liberação
de substâncias antiinflamatórias tais como IL-4, IL-IO,
IL-ll, IL-13 que têm como finalidade restaurar a homeostase.
É tido como certo que a gravidade da primeira fase
contribui para o início e continuidade da sepse e que a segunda
fase, reativa, tem papel na sua
patogênese53.
A alteração da dinâmica cardíaca, precocemente
anunciada pelo aumento da freqüência dos batimentos do
coração e, depois, da respiratória, anunciada pela
taquipnéia são os detectores imediatos do início da fase
pró-inflamatória, quando as citocinas são liberadas. Se a
agressão assume proporções indesejáveis ou surgem novos
fatores desencadeadores de mais inflamação local os
mecanismos de compensação antiinflamatória são despertados
para a manutenção da homeostase. Há, de acordo com o
postulado de Bone53, três circunstâncias em que o
equilíbrio não ocorre:
1. quando a agressão é maciça,
2. quando há a concorrência de uma segunda lesão e
3. quando há produção local de quantidade
excessiva ou escassa de um mediador. Quando há o desequilíbrio.
os mediadores pró-inflamatórios se espalham por via
sistêmica e, se são abundantes, aparecem os sinais clínicos da
sepse54. Níveis altos de mediadores antiinflamatórios, resposta
significativa do organismo à primeira fase, provocam
anergia ou depressão
imunológica37-40,55. Esse ciclo se
retroalimenta53,55,56 na tentativa de restabelecer a
homeostase ou, se não, persistirá o caos até a morte.
A demanda local, no início de todos esses
fenômenos, tem como resposta imediata o aumento da frequência
cardíaca e mais tarde da frequência respiratória.
Assim, taquicardia que surge no pós-operatório imediato sem
uma razão detectável pode ser prenúncio da possibilidade
de desequilíbrio; a respiração acelerada surge em seguida
com o agravamento da
situação57.
O diagnóstico precoce da complicação
intra-abdominal de caráter infeccioso pressupõe nem sempre,
re-intervenção cirúrgica para correção do fator causal e
interrupção da sepse abdominal. Tratando-se das operações
coloproctológicas, essas complicações, em
geral, estão relacionadas às deiscências das anastomoses cujas causas são
múltiplas e, delineá-las, não é nosso objetivo. Contudo é
importante salientar que quando o vazamento do conteúdo
intestinal ocorre por "defeito" na cicatrização das partes apostas,
em geral por volta do 5° ou 6° dia do pós-operatório
imediato, as manifestações clínicas, que acompanham a
magnitude do extravasamento, relacionam-se, também, com o
local da anastomose ficam na dependência da -possibilidade
de maior ou menor bloqueios regionais. Via de regra, nos
pacientes em boas condições prévias de saúde, as
deiscências por "defeito" de cicatrização são bloqueadas e as
expressões clínicas e consequências sistêmicas de menor
significado. Por outro lado, quando há defeito na confecção
cirúrgica da junção entre segmentos intestinais, o
vazamento é mais precoce e abundante e pode ocorrer sem que
haja tempo para o bloqueio. Observa-se que a
manifestação clínica mais precoce, além da hipercinesia cardíaca e
respiratória, é o tenesmo e a "diarréia". A meu ver, a
diarréia notável no primeiro ou segundo dia do pós-operatório,
longe de significar volta das atividades intestinais,
expressa complicações relacionadas com a anastomose. Esses
pacientes evoluem com outros distúrbios sistêmicos e
entre eles são notórios o mal estar geral, não bem definido,
a sede persistente e a desidratação. A repercussão local
é grave e caracteriza a peritonite, análogo
intra-abdominal, ou local, da síndrome da resposta inflamatória
sistêmical6, que se não contida a tempo, se efetivará como um
distúrbio sistêmico de dificil resolução.
TRATAMENTO
O prognóstico na peritonite é, decisivamente,
influenciado por vários fatores, dentre os quais os mais
destacados estão, por ordem de importância, o início do tratamento,
a idade, o estado geral de saúde do paciente, não
considerando qualquer outro fator de risco
concomitante10, 14,36.
O diagnóstico precoce da peritonite pós-operatória,
qualquer que seja a situação do doente, momentos antes do
início do processo, é passo decisivo quando se objetiva a cura.
O tratamento cirúrgico de indicação imediata será
agressivo com os seguintes fundamentos:
a. eliminar a fonte de infecção,
b. reduzir o contaminante peritoneal e,
c. evitar a peritonite continuada.
Não vamos comentar a respeito de detalhes de
tática cirúrgica desde que consideramos indispensável o
respeito aos preceitos enunciados acima. Porém é oportuno
lembrar que o cirurgião deve limitar-se, eliminando a fonte
de contaminação sem a aventura de amplas ressecções;
fechamento, exclusão, eventualmente, ressecção limitada
do foco da infecção são os procedimentos mais
aconselháveisl5, não se esquecendo de que quando se trata de
peritonite pós-operatória a primeira operação é a segunda lesão
mencionada nos postulados de Bone52 e, esta segunda
lesão, tem que ser efetiva em seus propósitos.
A abordagem da cavidade, é óbvio, será feita pela
mesma incisão cirúrgica, cuja extensão deve ser ampliada,
se for necessário.
A redução da contaminação peritoneal, passo
importante para provímento da cura, é feita com aspiração
do conteúdo infectante, dos exsudatos purulentos, de
restos alimentares ou partículas fecais, num esquema
de debridamento radical58, seguida de exaustiva lavagem
da cavidade com soro
fisiológico,14,59,60 aquecido a 37 °C
e cuidadosamente aspirado no final da
limpeza6l. O debridamento, nessas condições jamais será aquele que
Polk e col.62 apontaram para dar opinião contrária.
O objetivo maior no cumprimento dos fundamentos
básicos está justamente no interesse primordial em
resolver definitivamente o processo infeccioso intraperitoneal na
primeira re-intervenção, evitando, assim, uma segunda
re-intervenção, mesmo que bem indicada já que, nessa
situação, há a possibilidade indesejável do aumento do índice de
morte, não menos que 10 vezes superior ao que se
observa quando o problema é resolvido na primeira
operação36. Outro aspecto de interesse, relacionado com a resolução
definitiva da infecção intraperitoneal pós-operatória, é o de
evitar as laparotomias programadas e, como conseqüência, a
maléfica tendência de deixar o peritônio aberto. No entanto,
se não for possível a resolução definitiva do processo
patológico na primeira abordagem, as reoperações devem ser
planejadas e executadas com regularidade sem que o cirurgião
se intimide com sinais clínicos indicadores de suposta
melhora. Dessa forma, os resultados finais não são piores do que
os obtidos quando o problema tem resolução na primeira
intervenção, diferente do que ocorre quando a reoperação é
feita "por demanda", isto é, por causa do diagnóstico de
infecção continuada de uma peritonite pós-operatória tratada em
primeira instância. Nesse caso, aliás, o resultado é pior do
que o que se obtém quando as reoperações são
programadas, porque o diagnóstico da infecção persistente é, quase
sempre, retardado.36
Resolvido o fator causal da peritonite, a lavagem
exaustiva, tantos litros de solução fisiológica quantos
necessários para que o volume aspirado seja tão limpo quanto o
volume instilado e depois repetindo-se o volume inicialmente
gasto, tem como finalidade erradicar qualquer possibilidade
para perpetuar a
infecção63. Se isso for possível e a síndrome
da reação inflamatória sistêmica não for fato consumado,
restará a oportunidade de suportes mecânicos e metabólicos,
como básicos para o tratamento continuado desses
pacientes64.
A insistência na resolução inicial do processo
intra-abdominal procede porque esses pacientes são gravemente
enfermos e estariam sendo operados pela terceira vez, em
curto espaço de tempo. A segunda agressão já foi um fator
a mais na modulação da competência imunológica do
doente e, além disso, deixando de lado o fato de que a tomada
de decisão para reoperar é uma opção dificil,
principalmente quando o cirurgião considerou a primeira re-intervenção
como eficiente36, há evidente tendência em acrescentar
outros métodos na execução do terceiro ato, que não deixam de
ser complicadores, tais como a lavagem após operação, para
o que é obrigatória a colocação de vários e estratégicos
drenos; a instilação de substâncias anti-sépticas -com efeitos
mais tóxicos que
benéficos60,65 ou até a não menos perigosa
idéia de deixar o peritônio aberto, com errôneo argumento de
que a cavidade peritoneal deve ser tratada com se fosse o
buraco de um grande abscesso, o que, evidentemente, não o é;
ou porque as várias reaberturas terminam por impedir um
novo fechamento. A cavidade peritoneal é meio interno e
como tal deve ser manipulada.
Os drenos, na situação a que estamos nos
referindo, são a expressão do contra-senso, mas servem para
tema de Congresso onde ocupam espaço e atraem platéia.
Além de ser corpo estranho, causando lesões
erosivas, viscerais ou vasculares, pode agir como porta de
entrada, por via retrógrada, de outros microorganismos, como
tem sido evidenciado em operações limpas quando se
estabelece comunicação entre o meio interno estéril e o
ambiente66.
O uso de dreno abdominal prolonga o período
de internação hospitalar como soe acontecer nas situações
em que são utilizados com a pretensão de drenar um local
de trauma operatório como o da extirpação do apêndice
cecal, na apendicite aguda com peritonite
generalizada67.
Por outro lado, quaisquer que sejam as razões para as
re-intervenções, o problema seguinte estará relacionado com
a infecção abdominal continuada e com as complicações
decorrentes das seguidas reaberturas -ou pela opção ou
necessidade de deixar a cavidade aberta para evitar excessiva pressão
intra-abdominal68,69 - não só pelos danos provocados à parede
como, também, pela evisceração com as consequentes perdas
maciças de líquidos, eletrólitos e proteínas; aparecimento de
fistulas espontâneas e da probabilidade potencial de novas
infecções com a concorrência de bactérias do ambiente
hospitalar70. Essas complicações são mais frequentes nos pacientes
tratados com a técnica da cavidade aberta do que
fechada71,72.
Todos esses comentários nos levam ao início: feito
o preciso diagnóstico de infecção intraperitoneal
pós-operatória, o sucesso no tratamento estará na dependência
da oportunidade da re-intervenção cirúrgica, da tática a
ser utilizada, da solução imediata do processo e finalmente
do uso apropriado de antimicrobianos. É evidente que
não estamos desprezando outros fatores de riscos como
co-morbidade, idade do paciente ou qualquer outro, além
da eventual inexperiência do cirurgião.
Quanto à terapêutica adjuvante, com os necessários
suportes técnicos de cuidados intensivos, o que se
preconiza deve estar de acordo com os destaques
microbiológicos que nos têm sido fornecidos pelos exames laboratoriais
e pelo que está na literatura médica
pertinente10,16,73-75. Assim, as bactérias mais frequentemente isoladas desses
pacientes são as E. Coli, Proteus,
Pseudomonas, Estreptococos -grupo D enterococo, Klebsiella
sp, Estafilococos sp, os Bacteróides .fragilis e os Clostrídeos.
A infecção é polimicrobiana com a presença, quase
que obrigatória, das bactérias anaeróbicas. O
conhecimento desses fatos determina a escolha dos antibióticos e são
várias as combinações possíveis. Adequados entre si e
de acordo com bactérias presentes o que se observa é que
os tipos ou as diferentes associações não podem ser
considerados como fatores decisivos para o resultado final do
tratamento75-78. O aminoglicosídeo associado ao
metronidazol tem eficiência semelhante a uma quinolona de terceira
geração associada ao metronidazol, como adjuvantes no
tratamento das peritonites generalizadas
gravesl4. Reconhece-se, no entanto que os melhores resultados são
obtidos com antibióticos de largo espectro mas eles não são
melhorados quando a terapêutica é baseada no
antibiograma75.
Summary: Trauma, tissue surgical injury, or infection can provoke an intriguing pathological condition - associated with a complex -physiological protective "disturbs" known - as loca1ized inflammation response. However, when the aggressive factor is prolonged or overwhelming there is a -generalized systemic inflammatory response clinically identified as "Systemic inflammatory response syndrome" (SIRS) or "sepsis". The peritoneal infection-secondary or postoperative peritonitis -a severe complication of colorectal surgery can be the background of SIRS. In this paper we comment some aspect about treatment strategies and aggressive surgical approach of this severe condition.
Key Words: peritonitis, sepsis, colorectal surgery
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Endereço para correspondência:
Júlio César M. Santos Jr.
Instituto de Medicina
Av. Pres. Vargas, 315
12515-320 Guaratinguetá, SP