SEÇÃO GENÉTICA E BIOLOGIA MOLECULAR
Mauro Pinho - TSBCP
Apesar da grande evolução ocorrida
no conhecimento da biologia molecular do
câncer colorretal ao longo dos últimos anos,
permanecem dúvidas a respeito de seu potencial valor clínico.
A detecção de um número cada vez maior de
marcadores moleculares com valor prognóstico tem gerado
uma percepção de que apenas a possibilidade de uma
futura análise global do perfil genômico de cada
tumor individual pode vir a representar uma esperança para
a exata definição do comportamento biológico tumoral.
Entretanto, estudos paralelos têm revelado
a existência de um subgrupo de tumores malignos
do colon e reto os quais apresentam
características peculiares e semelhantes entre si quanto à forma
de apresentação, comportamento biológico e
prognóstico. São estes os tumores cuja fisiopatologia
está aparentemente relacionada à existência de êrros
de replicação ou simplesmente tumores RER (+).
O diagnóstico destes tumores é feito
através de um exame de crescente importância
denominado como pesquisa de instabilidade de
microssatélites (IMS). Para a compreensão deste exame assim
como de seu significado, torna-se necessário o
conhecimento de alguns conceitos os quais buscaremos rever
na presente seção.
1. O que são microssatélites ?
Como sabemos, o DNA humano é formado
por uma molécula que poderia atingir a extensão de um
a dois metros de extensão se fosse
hipotéticamente desenrolada. Esta molécula em dupla fita é
composta por uma seqüência de cerca de três bilhões de pares de
nucleotídeos, ou seja, adenina (A), timina (T),
citosina (C) ou guanina (G). Sabemos que cerca de 60 a
75% destes nucleotídeos são compostos por
seqüências únicas, ou seja, segmentos cuja organização
de nucleotídeos ocorre apenas uma vez em todo o
genoma. Dentre estas seqüências únicas estão os genes, que
são seqüências contendo o código para a síntese
de proteínas, os quais representam cerca de 5 a 10%
de todo o genoma.
Os 25 a 40% restantes da molécula de
DNA são formados pelas seqüências repetitivas de DNA,
as quais podem ser observadas diversas vezes em todo
o genoma. Estas seqüências de nucleotídeos podem
ser subdivididas em repetições dispersas e
repetições tandem (ou satélites), sendo este nome devido
ao aparecimento à espectrometria ótica de uma
banda "anexa" (ou "satélite") junto à banda
principal.As repetições tandem do DNA podem ser classificadas
de acordo com a extensão da seqüência repetitiva
em satélites, minissatélites e microssatélites.Enquanto
as seqüências satélites são mais extensas, os
chamados minissatélites são compostos por repetições de 9 a
80 pares de bases nucleotídicas (pb) e os
microssatélites consistem de pequenas repetições incluindo apenas
um a seis nucleotídeos.Assim sendo, podem ser
estes microssatélites compostos por um
mononucleotídeo(Ex:AAAAAAAAAAAAA), dinucleotídeo (Ex:CACACACACACACA),
trinucleotídeo (Ex: CAGCAGCAGCAGCAG), etc.
O número de repetições de minissatélites e
microssatélites pode variar entre os indivíduos, motivo pelo qual
são consideradas como as impressões digitais do DNA
de cada um e são utilizadas em exames para
verificação de paternidade.
2. O que é instabilidade de microssatélites ?
É a observação de que o DNA extraído
de células de determinados tumores apresentam
alterações no número de unidades repetidas em um ou
mais microssatélites quando comparados aos
mesmos microssatélites existentes em amostras de DNA de
um tecido normal do mesmo individuo, como aquele
obtido nas células sanguíneas, por exemplo. Dito de
outra forma, as células tumorais apresentam
"impressões digitais" defeituosas em seu DNA quando
comparadas aos outros tecidos do organismo.
3. Qual o significado da instabilidade
de microssatélites (IMS) ?
O DNA é uma molécula instável e
sofre freqüentes alterações através de perdas de
segmentos, mutações ocorridas durante o processo de
divisão celular, etc. Para corrigir tais alterações dispomos
de algumas proteínas com função de realizar os
reparos necessários para manter a integridade do DNA.
Estas proteínas são produzidas a partir de alguns
genes conhecidos como genes de reparo (mismatch
repair genes _ MMR) e sua função é exercida de
forma contínua, preservando os tecidos celulares.
A observação de um grande número
de alterações nas seqüências de microssatélites em
um determinado tecido tumoral demonstra a ausência
de uma função normal de reparo de DNA.
Representa, conseqüentemente, uma evidência indireta de
que existe uma deficiência na ação das proteínas de
reparo causada pela presença de mutações.
A este tipo de defeito genético
denominamos erros de replicação (replication errors _ RER +).
4. Como é diagnosticada a presença
de instabilidade de microssatélites (IMS) ?
Este diagnóstico é realizado através
da comparação entre as características dos
microssatélites do tecido tumoral e de um tecido normal do
indivíduo em questão, como sangue, por exemplo. Após a
coleta dos tecidos, é feita a extração do DNA de ambos e
a amplificação deste através de um
procedimento denominado reação em cadeia da polimerase
(PCR).Em seguida, a extensão de um ou mais microssatélites
é comparada entre os dois tecidos através de técnicas
de biologia molecular utilizando eletroforese. A fim
de otimizar os resultados e reduzir falsos negativos,
um painel organizado pelo Instituto Nacional de
Câncer dos Estados Unidos sugere que sejam
pesquisados sempre cinco microssatélites como
marcadores. Entretanto, devido à complexidade do exame
alguns autores acreditam que a pesquisa de um
único microssatélite, denominado como BAT26, pode
ser suficiente para evidenciar a existência de IMS
devido à sua elevada incidência de mutações nestes
casos, facilitando a palicação clínica deste teste em
maior escala.
5. Como são apresentados os resultados
da pesquisa de IMS ?
O resultado destes exames podem ser apresentados simplesmente como positivos
ou negativos pela simples demonstração ou não de
uma banda extra na eletroforese. Entretanto, exames
mais sofisticados pesquisando um maior número
de microssatélites podem oferecer um maior
detalhamento de acordo com freqüência de alterações entre
os microssatélites estudados. Desta forma, os
tumores colorretais poderão ser classificados entre aqueles
com elevada freqüência de instabilidade (MSI-H),
baixa freqüência de instabilidade (MSI-L) ou
sem instabilidade (microssatélite estável ou MSS).
6. A pesquisa de instabilidade de
microssatélites é a única forma de avaliar a existência de
erros de replicação no DNA tumoral ?
Não. Como dissemos acima, a observação
de alterações nos microssatélites é uma forma indireta
de avaliarmos uma possível existência de defeitos na
ação das proteínas de reparo. Assim sendo, uma
forma alternativa de identificar tumores cuja origem
esteja relacionada a erros de replicação é a avaliação
das próprias proteínas de reparo. Embora tenham
sido identificadas até hoje seis proteínas de reparo,
cerca de 90% das mutações são encontradas em apenas
duas destas, denominadas como hMLH1 e a hMSH2. O estudo destas proteínas através de técnicas
de imunohistoquímica ou de seus genes através
de sequenciamento direto tem sido relatado como
opções confiáveis para a detecção de tumores com erros
de replicação.
7. O câncer colorretal associado à IMS
apresenta características especiais ?
Sim, e este é um aspecto muito
importante. Existem evidências bem estabelecidas de que
tumores colorretais malignos com erros de replicação (ou
IMS +) apresentam características que os destacam
em diversos aspectos, quanto ao local de incidência,
idade, aspectos histológicos e prognóstico, conforme
descrito abaixo:
* Predomínio em localização proximal no colon;
* Maior incidência em idades mais precoces (abaixo de 40 a 50 anos);
* Maior incidência de tumores múltiplos;
* Maior incidência de tumores mucinosos;
* Pior diferenciação tumoral;
* Melhor sobrevida em relação ao câncer colorretal estável para microssatélites;
8. Quais as evidências atuais em relação
ao melhor prognóstico do câncer colorretal
com erros de replicação (IMS +) ?
Existem diversos estudos comparando a sobrevida entre pacientes portadores de
câncer colorretal com ou sem erros de replicação.
Conforme demonstrado na Tabela-1 abaixo, a maior parte
destes demonstra uma significativa vantagem no
prognóstico em tumores com instabilidade de microssatélites.
Tabela 1 - Análise da sobrevida em portadores de câncer colorretal com ou sem instabilidade de microssatélites
Autor | N | Melhor sobrevida | Obs |
em pacientes IMS + | |||
Suh e cols, 2002 | 61 | Sim (p= 0.05) | Pacientes < 40 anos |
Samowitz e cols, 2001 | 1026 | Sim (redução do risco em 60%) | |
Guidoboni e cols, 2001 | 245 | Sim | Tumores II/III |
Gafa e cols, 2000 | 216 | Sim (p < 0.001) | |
Hemminki e cols, 2000 | 1044 | Sim ( 90% x 43%) | Sobrevida em 3 anos |
Wright e cols, 2000 | 255 | Sim (p = 0.01) | |
Gonzalez-Garcia e cols, 2000 | 415 | Sim | |
Elsaleh e cols, 2000 | 388 | Sim ( 58% x 32%, p =0.01) | Dukes c |
Gryfe e cols, 2000 | 607 | Sim ( p < 0.001) | |
Messerini e cols, 1999 | 50 | Sim | Tumores mucinosos |
Salahshor e cols, 1999 | 181 | Não | |
Feeley e cols, 1999 | 50 | Não | |
Gervaz e cols, 2002 | 88 | Não |
9. Qual a relação entre IMS e o
câncer hereditário ?
A perda de função de algumas proteínas
de reparo é considerada como a base
fisiopatológica biomolecular da síndrome hereditária conhecida
como câncer colorretal hereditário não-polipóide
(HNPCC). Conseqüentemente, a presença de instabilidade
de microssatélite deve ser esperada na quase
totalidade destes casos, cujos tumores apresentam
as características descritas acima.
10. Pode ocorrer IMS em tumores
colorretais esporádicos (não hereditários) ?
Sim. Conforme vemos na Tabela-2, os
estudos envolvendo tumores esporádicos em geral referem
que cerca de 10-15% destes apresentam instabilidade
de microssatélites, confirmando a existência de erros
de replicação do DNA. Entretanto, os estudos
realizados apenas nos tumores incidentes em pacientes
mais jovens ou localizados em segmentos proximais
do colon demonstram um índice de positividade
bastante maior de instabilidade de microssatélites. Por
outro lado, em um estudo restrito a tumores de reto
a incidência de erros de replicação reduziu-se a
apenas 2% dos casos, confirmando a relação entre
a instabilidade de microssatélites e tumores situados
em colon direito ou transverso.
É importante notar que o câncer
colorretal associado a erros de replicação irá apresentar o
mesmo tipo de localização e comportamento
biológico independentemente de sua natureza esporádica
ou hereditária (HNPCC).
Tabela 2 - Incidência de positividade para instabilidade de microssatélites em séries de câncer colorretal esporádico (apenas MSI-H considerados)
Autor | N | IMS + | Obs |
Tsai e cols, 2002 | 39 | 20 % | |
Feeley e cols, 1999 | 50 | 10% | |
Abe e cols, 2000 | 110 | 11% | |
Salashor e cols, 1999 | 181 | 12% | |
Ward e cols, 2001 | 302 | 11% | |
Gonzalez-Garcia e cols, 2000 | 415 | 7,5% | |
Wright e cols, 2000 | 255 | 8% | Dukes C |
Gervaz e cols, 2002 | 88 | 24% | T3N0 |
Ikenaga e cols, 2002 | 53 | 50% | < 40 anos |
Suh e cols, 2002 | 61 | 31% | < 40 anos |
Ho e cols, 2000 | 124 | 26% | < 50 anos |
Gryfe e cols, 2000 | 607 | 17% | < 50 anos |
Naidoo e cols, 2000 | 32 | 31% | < 35 anos |
50 | 12% | > 50 anos | |
Guidoboni e cols, 2001 | 109 | 43% | Colon direito, estágio II/III |
Elsaleh e cols, 2000 | 388 | 19% | Colon direito e transverso |
Nilbert e cols, 1999 | 165 | 2% | Cancer de reto |
Messerini e cols, 1999 | 50 | 36% | Tumores mucinosos |
11. Quando deve ser indicada a pesquisa de IMS ?
O custo e complexidade da pesquisa de instabilidade de microssatélites e a relativamente
baixa incidência de alterações são fatores que
contribuem para que este exame não seja indicado
como procedimento de rotina em todos os casos de
câncer colorretal. Entretanto, está indicada sua realização
em um grupo de pacientes portadores de câncer
colorretal que preencha algumas das características
compatíveis com tumores com erros de replicação.
Para padronizar as indicações de pesquisa
de IMS foram elaborados os chamados Critérios
de Bethesda, a saber:
* Individuos com tumores em famílias
que preencham os critérios de Amsterdam para
câncer colorretal familiar não-polipóide
(HNPCC). (Tabela 3)
* Indivíduos com dois tumores relacionados
à HNPCC, incluindo câncer colorretal
sincrônico, metacrônico ou tumores associados extracolônicos.
* Indivíduos com câncer colorretal e um parente
em primeiro grau com história de adenoma ou
câncer colorretal ou tumor extra-colônico associado
à HNPCC. Um dos tumores malignos deve ter
sido diagnosticado antes dos 45 anos e o adenoma
antes de 40 anos.
* Indivíduos com câncer colorretal ou
endometrial diagnosticado antes dos 45 anos.
* Indivíduos com câncer colorretal proximal
pouco diferenciado diagnosticado antes dos 45 anos.
* Indivíduos com câncer colorretal com células
em anel de sinete diagnosticado antes dos 45 anos.
* Indivíduos com adenomas diagnosticados
abaixo dos 40 anos.
Tabela 3 - Critérios de Amsterdam para o diagnóstico de câncer colorretal hereditário não-polipóide (HNPCC)
§ Mínimo de três parentes portadores de câncer colorretal histológicamente comprovados |
§ Pelo menos um parente de primeiro grau dos outros dois |
§ Exclusão do diagnóstico de polipose adenomatosa familiar |
§ Mínimo de duas gerações afetadas |
§ Pelo menos um dos casos diagnosticado antes dos 50 anos |
12. Qual a conduta a ser seguida nos casos
de câncer colorretal associado à IMS ?
A detecção de instabilidade de
microssatélites em um paciente com suspeita clínica de pertencer
a uma família de HNPCC pode ser de grande
importância devido à possibilidade de oferecer a possibilidade
de cuidados adequados de rastreamento e
diagnóstico precoce em outros membros da mesma família em
risco. Além disto, poderá orientar quanto à oportunidade
de realizar-se nestas famílias testes de sequenciamento
de genes de reparo para a identificação das
mutações presentes.
Considerando-se a necessidade de
identificar cada vez mais o comportamento biológico
individual dos tumores, o diagnóstico de erros de replicação
no câncer colorretal esporádico torna-se um
avanço bastante importante devido ao seu
prognóstico diferenciado e à possibilidade de oferecer
um tratamento mais específico e adequado a cada paciente.
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