RELATO DE CASO
ANA MARIA DO AMARAL ANTONIO MADER
ADRIANO DE ALMEIDA
BRUNA ELENA GRACIANO FALCONE
FERNANDA ALVES SANJAR
PRISCILA GAGLIARDI KALIL DEBS
SÉRGIO GONÇALCES
MADER AMAA; ALMEIDA A; FALCONE BEG; SANJAR FA; DEBS PGK; GONÇALVES S. Adenocarcinoma de íleo terminal
como complicação de Doença de Crohn.
Rev bras Coloproct, 2003;23(3):196-199
RESUMO: Introdução - Pacientes com longa história de Doença de Crohn têm risco aumentado para o desenvolvimento de carcinoma gastrointestinal. Este risco em pacientes com Doença de Crohn tem sido estimado entre 6 a 320 vezes maior que em indivíduos sadios. Objetivo - Os autores relatam um raro caso de associação entre DC e adenocarcinoma. Material e Método - L.A.B., masculino, 45 anos, branco, apresentava dor abdominal em cólica nos últimos 6 meses, com piora há 1 mês, acompanhada de vômitos biliosos e diminuição do número de evacuações. Ao exame físico, tinha abdome distendido, doloroso à palpação difusamente, com massa palpável em flanco e fossa ilíaca direita, ruídos hidroaéreos aumentados e com timbre metálico. Foi levantada a hipótese diagnóstica de suboclusão intestinal. O paciente foi submetido à laparotomia exploradora de urgência, tendo sido encontrado tumor no íleo terminal, além de múltiplos implantes metastáticos em alças de intestino delgado, fígado e retroperitôneo. Foi ressecado segmento de íleo terminal, ceco e cólon ascendente. Resultados - O exame histopatológico revelou a presença de adenocarcinoma túbulo-viloso de tipo vegetante, infiltrativo até o tecido adiposo adjacente e comprometimento de 3 linfonodos mesentéricos. Havia ainda ileíte crônica ulcerativa e presença de áreas de fibrose e estenose mural, agregados linfóides transmurais, focos de displasia epitelial e linfangectasias. Conclusão - Os autores concluem que, embora rara, existe uma importante associação entre Doença de Crohn, displasia e carcinoma, devendo-se estar sempre atento no acompanhamento dos pacientes com longo tempo de evolução da doença.
Unitermos: doença de Crohn, obstrução intestinal, neoplasias intestinais, adenocarcinoma de intestino delgado
introdução
Ileíte regional foi primeiramente descrita
em 1932 por Crohn como uma entidade patológica
definida, embora Kennedy Dalziel tenha descrito uma
condição similar em 1913, afetando intestino delgado,
intestino grosso ou combinação de ambos. O
primeiro caso descrito de associação de Doença de Crohn
(DC) e adenocarcinoma foi relatado por Warren e
Sommers em 1948 com comprometimento de cólon e
por Ginzburg em 1956, acometendo intestino
delgado. Sabe-se que pacientes com longa história de DC
têm risco aumentado de desenvolvimento de
carcinoma gastrointestinal. O risco relativo de haver
desenvolvimento de carcinoma de intestino delgado em
pacientes com DC tem sido estimado entre 6 a 320
vezes maior que em indivíduos sadios. Há 174 casos na
literatura, sendo 79 em intestino delgado. Os autores
relatam um caso de associação entre DC e adenocarcinoma.
RELATO DO CASO
L.A.B., masculino, 45 anos, branco, natural
de Guaxupé -MG, procurou o pronto atendimento do
Hospital de Ensino em 4/4/2002, queixando-se de dor
abdominal em cólica nos últimos 6 meses, com piora há 1
mês, localizada em flanco direito, com irradiação para todo
o abdome. Referia piora da dor no período
pós-prandial, acompanhada de vômitos biliosos e diminuição do
número de evacuações. Referia ainda emagrecimento de
13 kg no último mês. Ao exame físico encontrava-se em
REG, descorado +/4+, desidratado +/4+, P.A. de 90x60 mm
Hg e pulso de 110 batimentos por minuto. Ausculta
pulmonar com MV+ bilateralmente sem RA. Coração
com BRNF, sem sopros. Abdome distendido, doloroso
à palpação difusamente, com presença de massa
palpável no flanco e fossa ilíaca direita. Os ruídos hidroaéreos
estavam aumentados e com timbre metálico.
Como antecedentes pessoais, referia
episódios de dor abdominal acompanhada de diarréia, que
evoluía em períodos de surtos e remissões, há pelo menos 15
anos. Há cerca de 3 anos fez exame colonoscópico,
sugestivo de colite ulcerativa, com micropólipos, cujo exame
anatomopatológico revelou colite inespecífica discreta.
Apresentava ainda litíases renal e biliar e era portador de
espondilite anquilosante cervical e lombar há 8 anos,
comprovada por tomografia computadorizada.
Nos exames laboratoriais, o hemograma
mostrou hemácias de 4,12 milhões/mm3; Hb de 9,3 g%; Htc
de 28%; leucócitos de 7400 céls/mm3 (bastonetes 11%;
segmentados 55%); plaquetas 257.000 céls/mm3. A
creatinina era de 0,8 mg/dl; uréia de 77 mg/dl e glicemia de 93
mg/dl.; proteínas totais 6,8 g% (albumina de 2,4 g%;
relação A/G de 0,55). O coagulograma revelou TP de 16,9
seg., AP de 52%, RNI de 1,33 e TTPA de 29,2 seg.
O RX abdominal mostrou alças dilatadas e
com presença de níveis hidroaéreos, indicando
suboclusão intestinal. O paciente foi submetido a laparotomia
exploradora de urgência, tendo sido encontrado tumor
no íleo terminal, além de múltiplos implantes
neoplásicos em alças de intestino delgado, fígado e peritôneo.
Foi ressecado segmento de íleo terminal e cólon direito,
com reconstrução do trânsito através de anastomose
íleo-cólon transverso.
O exame anátomo-patológico revelou
tratar-se de adenocarcinoma túbulo-viloso
moderadamente diferenciado, de tipo sobrelevado (Figuras 2 e 4),
localizado em área de estenose ileal, medindo 3,0 x
2,0 cm, e metástase neoplásica em 3
linfonodos mesentéricos. O intestino delgado apresentava
ainda lesões ulceradas ora longitudinais, ora aftóides
em mucosa, acometendo de forma descontínua, além de
áreas de estenose e espessamento fibroso da parede ileal
(Figura-1), inflamação transmural, com agregados
linfóides, linfangectasias e focos de displasia epitelial
(Figura-3). Não foram detectados granulomas epitelóides nos
cortes histológicos examinados. O segmento colônico
mostrava apenas colite crônica discreta.
Figura 1 - Segmento ileal mostrando área de estenose, espessamento da parede e úlceras mucosas longitudinais. |
Figura 2 - Presença de tumoração sobrelevada e aspecto infiltrativo ao corte, em área de estenose de íleo terminal. |
Figura 3 - Fotomicrografia (HE-400X). Áreas de displasia. Presença de cariomegalia, perda da polaridade nuclear, nucléolos evidentes, diminuição de mucina e aumento do número de mitoses nas células epiteliais. |
Figura 4 - Fotomicrografia (HE-40X). Adenocarcinoma túbulo-viloso moderadamente diferenciado, infiltrativo. |
Paciente evoluiu bem, sem intercorrências
clínicas, tendo alta hospitalar no 5? dia pós-operatório.
Após 1 mês retornou ao hospital com quadro de
síndrome consumptiva, queda do estado geral por
carcinomatose abdominal e saída de secreção turva pelo orifício de
dreno, tendo sido liberado com tratamento clínico e
prognóstico reservado.
DISCUSSÃO
A Doença de Crohn (DC) juntamente com
a retocolite ulcerativa idiopática (RCUI), compõem o
grupo das doenças inflamatórias intestinais idiopáticas.
A DC é uma doença inflamatória que pode
comprometer qualquer porção do trato gastrointestinal, mas
freqüentemente envolve o intestino delgado e o cólon.
Existem alguns fatores que devem ser lembrados na
etiopatogênese desta afecção, tais como: predisposição
genética, agentes infecciosos, alterações imunológicas e
estruturais da mucosa do trato gastrointestinal. A DC
pode estar relacionada a manifestações clínicas
extra-intestinais como: poliarterite migratória,
sacro-ileíte, espondilite anquilosante, eritema nodoso,
uveíte, pericolangite e alterações renais decorrentes de
comprometimento inflamatório
ureteral1.
O primeiro caso descrito de associação de
DC e adenocarcinoma foi relatado por Warren e
Sommers em 1948 com comprometimento de cólon e por
Ginzburg em 1956, acometendo intestino
delgado2. Durante muitos anos tem sido reconhecido que paciente com
longa história de DC tem risco aumentado para o
desenvolvimento de adenocarcinoma
gastrointestinal3,4. Segundo alguns autores, o risco relativo de desenvolvimento
de carcinoma no intestino delgado em pacientes com
DC tem sido estimado 6 a 320 vezes maior que em
pacientes sadios5. Em estudo realizado por Sigel et al. em
1999, 2883 casos de DC foram revistos, sendo encontrada
uma associação de DC e carcinoma em apenas 1,5% dos
casos6.
A idade dos pacientes comprometidos por adenocarcinoma e DC tende a ser menor, ou seja,
com idade média de 48,2 anos, similar ao presente caso;
ao contrário daqueles sem DC, cuja idade média é de
64,6 anos. Não há diferença em relação ao sexo quanto
ao adenocarcinoma intestinal; no entanto, nos
pacientes com DC, observa-se um predomínio do sexo
masculino numa proporção de
3:16,7,8,9.
Em relação ao local de acometimento
intestinal, nos pacientes sem DC, o adenocarcinoma
costuma ocorrer mais em regiões proximais, sendo que a
incidência no duodeno chega a ser duas vezes maior
em relação ao jejuno e cerca de quatro vezes mais em
relação ao íleo. Entretanto, nos pacientes com DC, há
um predomínio (73%) de adenocarcinoma na região
ileal9,10.
Os sintomas em pacientes com DC, tais como obstrução intestinal, massa abdominal, perda de
peso, perfuração e sangramento, são indistinguíveis
daqueles com carcinoma. Este fato tende a mascarar e atrasar
o diagnóstico de malignidade em
DC4,9.
O diagnóstico geralmente é feito pela
história clínica, achados radiológicos e endoscópicos, os
quais revelam áreas de estenose e
comprometimento descontínuo do trato gastrointestinal. A biópsia
costuma apresentar ulcerações na mucosa,
inflamação transmural, fibrose, linfangectasias, fístulas
circundadas por tecido de granulação, displasia e
eventualmente neoplasia; granulomas epitelóides são referidos em
cerca de 40% dos casos. No caso relatado, embora o
paciente não tivesse o diagnóstico clínico de DC, a
alteração intermitente do hábito intestinal,
achados endoscópicos prévios e a presença de
espondilite anquilosante, associados aos aspectos morfológicos
atuais, contribuíram para confirmação diagnóstica.
A displasia aparece geralmente nas
adjacências do tumor, podendo também aparecer em segmentos
distantes. Embora a seqüência displasia-carcinoma não
tenha sido tão claramente estabelecida na DC como é
na RCUI, parece que o desenvolvimento do
adenocarcinoma na DC é precedido pela displasia. Petra, em
1997, encontrou 10 casos de displasia em região adjacente
ao carcinoma invasivo, num total de 11 casos
estudados4,8.
O carcinoma geralmente ocorre nas áreas
de estenose, causando obstrução. Eles tendem a ser
pouco diferenciados e associados a um pior prognóstico,
também pelo fato de que o diagnóstico costuma ser
tardio, tendo sido reportada uma sobrevida média de 7,9
meses4,8. Carcinoma em DC pode ser multifocal,
havendo estudos relatando adenocarcinoma multicêntrico
em 20% dos casos de DC10.
Os autores concluem que, embora rara,
existe uma importante associação entre Doença de
Crohn, displasia e carcinoma, devendo-se estar sempre
atento para o diagnóstico e acompanhamento dos pacientes
com longo tempo de evolução da
doença.
SUMMARY: For many years it has been recognized that patients with a long history of Crohn's Disease are at increased risk for
the development of gastrointestinal carcinoma. The authors report on a rare association between Crohn's Disease and
adenocarcinoma and conclude that, although it is rare, there is an important association with Crohn's Disease, dysplasia and carcinoma. This
must always be kept in mind when following up patients with long-term evolution of this disease.
Key words: Crohn's disease, intestinal obstruction, intestinal neoplasia, adenocarcinoma small intestine
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Cotran RS, Kumar V & Robbins SL. Intestinos Delgado
e Grosso. Patologia estrutural e funcional.
6th ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2000. p.732-53.
2. Cuvelier C, Bekaert E, De Potter C et al. Crohn's disease
with adenocarcinoma and dysplasia. Macroscopical,
histological, and immunohistochemical aspects of two cases. Am
J Surg Pathol 1989;13 (3):187-96.
3. Rubio CA, Befritz R, Poppen B et al. Crohn's disease
and adenocarcinoma of the intestinal tract. Report of four
cases. Dis Colon Rectum 1991;34(2):174-80.
4. Petras RE, Mir-Madjlessi SH, Farmer RG. Crohn's
disease and intestinal carcinoma.
Gastroenterology 1987; 93(6):1307-14.
5. Ribeiro MB, Greenstein AJ, Yamazaki Y. Adenocarcinoma
of the small intestine in Crohn's disease. Surgery,
Gynecology & Obstetrics 1991;173(5):343-9.
6. Sigel JE, Petras RE, Lashner BA et al. A report of 30
cases with a focus on coexisting dysplasia. Am J Surg Pathol
1999; 23(6):651-5.
7. Ellamushi HE, Smith IS. Small bowel
adenocarcinoma complicating Crohn's disease. Scott Med
J 1992;37(2):54.
8. Rodrigez Ramos C, Guillen P, Palomo MJ et
al. Adenocarcinoma de intestino delgado y enfemedad de
Crohn. Rev Esp Enferm Dig 1997; 889(4)321-4.
9. Senay E, Sachar DB, Keohane M et al. Small bowel
carcinoma in Crohn's disease. Distinguishing features and risk
factors. Cancer 1989; 63(2):360-3.
10. Michelassi F, Testa G, Pomidor WJ et al.
Adenocarcinoma complicating Crohn's Disease. Dis Colon
Rectum 1993; 36(7):654-61.
Endereço para Correspondência:
Ana Maria do Amaral Antonio Mader.
Rua França Pinto, 832 / apto 41 - Vila Mariana
04.016-003 - São Paulo (SP)
Fone/Fax: (011) 5573-9723.
E-mail: anamader@uol.com.br
Trabalho realizado no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Fundação ABC. Santo André - SP - Brasil.