RELATO DE CASO
RESUMO: A presença de tumor carcinóide no divertículo de Meckel é rara, sendo quase sempre encontrado durante necrópsias ou em procedimentos cirúrgicos indicados por outras razões. Seu comportamento biológico assemelha-se ao dos carcinoides ileais. Tumores maiores de 10 mm associam-se com maior freqüência à presença de metástases, predominantes no sexo feminino. Raramente esses doentes apresentam -se com a síndrome carcinóide. Até 1993 somente seis doentes tinham apresentado múltiplos carcinóides meckelianos. Quando descobertos, o procedimento cirúrgico deve obedecer aos princípios oncológicos, extirpando-se o segmento ileal e o mesentério com boa margem cirúrgica. Os autores apresentam caso de duplo tumor carcinóide assestado em divertículo de Meckel diagnosticado durante necrópsia.
Unitermos: Divertículo de Meckel, tumor carcinóide, Neoplasias do divertículo de Meckel
Introdução
O Divertículo de Meckel (DM) é
anomalia congênita que resulta da persistência parcial ou
total do ducto onfalo-mesentérico, normalmente
reabsorvido no terceiro mês de vida fetal. A grande maioria
dos relatos sobre o mesmo refere-se a achados
acidentais, quer em necrópsias quer durante cirurgias
motivadas por outras afecções.
Responsável por quadros
inflamatórios, obstrutivos e hemorrágicos, o DM abriga
também neoplasias primárias, benignas e
malignas, extremamente raras e responsáveis por 1% de
suas afecções. Das malignas, o carcinóide é
responsável por um terço delas
1. Como o DM ocorre em 1 a 4% dos indivíduos, a possibilidade do tumor
carcinóide nele se assestar é muito baixa
2. Seu comportamento biológico é próximo ao dos demais carcinoides
do delgado 3.
Trinta por cento dos tumores carcinóides
do íleo são multicêntricos
4 ,mas tal fato é raro no DM, já que até 1988 somente três desses casos haviam
sido comunicados 1. O presente relato refere-se a um
caso de necrópsia, quando se detectou a presença de
tumor carcinóide duplo assestado em DM. A
raridade desta associação e a oportunidade de rever
seus principais eventos justifica esta apresentação.
Relato do caso
Homem branco, de 46 anos, foi admitido na emergência do HSPE-FMO queixando-se de forte
dor precordial, exacerbada pelo esforço físico e tosse
há 24 horas. Concomitantemente apresentava
taquicardia e vômitos aquosos, não relacionados à
alimentação. Sabia sofrer do coração, tendo sido internado
várias vezes com insuficiência cardíaca.
Apresentava-se cianótico, dispneico, PA: 110 x 90 mmHg, FC:
140 bpm. Com diagnóstico presuntivo de
infarto miocárdico foi internado na Cardiologia.
Permaneceu com dor precordial, dispnéia e taquicardia, aos
quais se somaram oligúria, icterícia e edema de
membros inferiores. Apresentou rápida queda do estado
geral, vindo a falecer no 6° dia de internação.
A necrópsia foi realizada três horas após
o óbito. O exame do abdome revelou a presença
de formação diverticular, medindo 40 mm de
comprimento por 20 mm de diâmetro, localizada na borda anti
-mesentérica do íleo, a um metro da válvula
íleo-cecal. À abertura, a mucosa exibia pregueamento
levemente diminuído, de colorido róseo-acastanhado,
com presença de dois nódulos sólidos e
amarelados, medindo 4 mm e 12 mm de maior diâmetro,
localizados na porção distal (Figura-1).
Figura 1 - Fotografia de segmento de intestino delgado aberto, com formação diverticular exibindo a presença de dois nódulos sobrelevados |
O exame microscópico confirmou duas formações nodulares, de 3 mm e 9 mm, distando
cerca de 3 mm uma da outra. Estavam compostas por
ninhos de células tumorais, com padrão de crescimento
insular e trabecular, de aparência monótona e
ocasionais formações acinares e de rosetas (Figura-2).
Figura 2 - Fotomicrografia de mucosa intestinal infiltrada por ninhos de células tumorais, de padrão insular ( HE , 100 x ) |
As células eram grandes, uniformes, de
núcleo redondo, com leve pleomorfismo, cromatina
grosseira, citoplasma basofílico e bem definido (Figura-3).
Figura 3 - Tumor carcinóide apresentando células de padrão monótono, com leve atipia nuclear (HE, 400x) |
Não foram identificadas figuras de mitose. As lesões infiltravam em grande parte a mucosa, atingindo focalmente a camada muscular própria na lesão de maior tamanho. No restante da mucosa ileal notou-se edema e congestão moderada. O diagnóstico histopatológico foi de tumores carcinóides em divertículo de Meckel.
Discussão
Os tumores localizados no DM são raros.
Ao serem estudados 8.305 carcinoides digestivos,
foram encontrados apenas 24 (0,29%) assestados no
DM 5. Soltero e Bill encontraram à cirurgia apenas uma
neoplasia em 202 casos de DM sintomáticos
6. A despeito de sua raridade, os neoplasmas meckelianos
primários cobrem ampla variedade de tipos histológicos,
sendo mais freqüentes os carcinóides (32,5%), seguidos
pelos leiomiosarcomas (18%), adenocarcinomas (12%)
e leiomiomas (12%)1. Até 1993, o total de
tumores carcinoides observados no DM era de apenas 111;
a maioria desses relatos deveu-se a achados de
necrópsia (40%) e ao encontro acidental durante
cirurgias motivadas por outras afecções (35 %)
7,8.
A incidência desses tumores no sexo
masculino é pelo menos duas vezes maior que no feminino
2, 9,10 e a média de idade relatada está ao redor de 55 anos
, variando de 14 meses a 80 anos 8,11 .
Seu tamanho varia de 2 mm a 22 mm, com média de 8,6 mm
2.
Geralmente apresentam-se de tamanho menor de 10 mm e sua distribuição no divertículo
é predominantemente distal - 72%, cabendo à base
17 % e ao corpo 8% 2, 10, 12 .
Embora os carcinóides do delgado sejam
com freqüência múltiplos, tal fato no DM é
extremamente raro, pois até 1993 haviam sido relatados somente
seis casos um desses doentes apresentava quatro
tumores carcinoides em seu divertículo
3,7.
Os carcinoides do DM têm
características clinico-patológicas comuns aos situados no íleo:
maior agressividade, produção de serotonina, associação
com isquemia intestinal e com outros tumores,
especialmente com os situados no intestino grosso
4. No entanto, guardam também aspectos encontrados nos
carcinoides apendiculares - no mais das vezes solitários,
pequenos e assintomáticos 13. Todavia, devido a seu alto
potencial metastático e por suas características
histoquímicas, devem ser encarados como próximos aos ileais
2,3 .
Metástases ocorrem em 22% dos
carcinoides do DM, índice menor que os apresentados
pelos carcinoides do jejuno (35,3%), íleo (35,4%) e
colo (57,4%), mas maiores que os do apêndice cecal
(2,9 %) e duodeno (16,3%) 1. Sua presença é
diretamente proporcional ao tamanho da neoplasia; elas se
fazem para qualquer órgão e pacientes sintomáticos
tendem a apresentá-las em maior número e mais
distantes. Contrastando com a maior incidência do DM no
sexo masculino, são as mulheres que apresentam
maior número de metástases - 50% contra 12,5%
respectivamente 8.
Raramente ultrapassam a serosa intestinal, estando a maioria deles aquém da túnica muscular
10.
Os carcinoides do intestino médio,
incluindo os originados no DM, comumente são argentafins
e produtores de serotonina. Todos os quatro
tumores relatados por Moyana et al eram imunoreativos
para serotonina, o que reafirma seu grande potencial
de metastatização para o figado e o conseqüente
aparecimento da síndrome carcinóide
3.
Excetuando-se os casos da síndrome carcinóide, o cortejo sintomático desses tumores
é inespecífico, manifestando-se por
síndromes obstrutivas, hemorrágicas e inflamatórias.
Mais raramente pode ocorrer perfuração, inclusive
associada com corpo estranho 14.
A rigidez e fibrose colágena do
mesentério, além de artérias e veias com paredes espessadas
pela deposição de tecido elástico principalmente
na adventícia. Estão associadas à presença do
tumor carcinóide do intestino delgado e também do
DM, sendo os principais responsáveis pelo
fenômeno obstrutivo - devido à retração e torção -. e por
alterações isquêmicas 11,15
.
Por vezes esses tumores são
diagnosticados após ocasionarem fenômenos inusitados; há relatos
de metástases de carcinóides duplos meckelianos em
sacos herniários 1 .
Embora de difícil constatação clínica, o
DM pode ser revelado pela arteriografia mesentérica,
pelo estudo contrastado do delgado e por
técnica radioisotópica utilizando Tecnécio 99m , quando
da presença de mucosa gástrica heterotópica
7 .
Quando uma neoformação for descoberta
no DM durante a cirurgia, a literatura recomenda
que sua extirpação obedeça aos critérios de
malignidade, isto é, ampla margem de ressecção e retirada
dos linfonodos mesentéricos. Devido à existência
de carcinóides múltiplos (30%) e de outros
tumores, principalmente nos cólons (22 a 47%),
advogam-se cuidados redobrados no exame da cavidade
abdominal 16.
SUMMARY: The carcinoid of Meckel's diverticulum ( MD ) is a rare lesion. Most of these tumors are casually found out in necropsy or in surgery for other pathology. Carcinoids of MD resemble ileal carcinoids in their biological behavior. Metastases occur with a considerable frequency in tumors larger than 10 mm, and their rate are twice higher in women than in men. Carcinoid syndrome from a primary tumor of MD is an extreme rarity. Until 1993 multiple carcinoids of a MD were reported in only six patients. The recommended treatment of this tumors should be similar to that of small intestinal carcinoid, namely wide excision of intestine with a wedge of mesentery. The autors present a case of MD with dual carcinoid tumor casually found during a necropsy .
Key words: Meckel's diverticulum, Carcinoid tumor, Neoplasm of Meckel's diverticulum
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Endereço para correspondência:
Sansom H. Bromberg
Av. Angélica 589 Conj 81
01227- 000 - São Paulo - (SP)
E-mail: nbrombe@attglobal.net
Trabalho realizado no Programa de Pós Graduação em Gastroenterologia Cirúrgica e no Serviço de Anatomia Patológica do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo - Francisco Morato de Oliveira (HSPE-FMO)