RELATO DE CASO


FÍSTULA ANORRETAL COMPLEXA POR DOENÇA DE BEHCET - RELATO DE CASO

VIRGÍNIO CÂNDIDO TOSTA DE SOUZA - TSBCP
ELÍSIO MEIRELES DE MIRANDA - TSBCP
FÉLIX CARLOS OCARIZ BAZZANO
JOSÉ CARLOS CORRÊA
BEATRIZ DEOTI SILVA RODRIGUES
CARLOS ROBERTO AMORIM


SOUZA VCT; MIRANDA EM; BAZZANO FCO; CORRÊA JC; RODRIGUES BDS; AMORIM CR. Fístula Anorretal Complexa por Doença de Behcet - Relato de Caso. Rev bras Coloproct, 2004; 24(3): 270-273.

RESUMO: Relato de caso de um paciente de 35 anos de idade com fístula anorretal complexa por Síndrome de Behcet. Considerada uma doença de comportamento auto-imune, tem como principal alteração anatomopatológica a vasculite. Decorrente da presença de úlcera aftóide extensa, localizada na altura da linha pectínea, evoluiu com infecção e abscesso anorretal com drenagem espontânea e formação de trajeto fistuloso alto, no nível do promontório, envolvendo grande massa muscular esfincteriana e assoalho pélvico. Enfatizamos a importância de um tratamento cirúrgico adequado, evitando a seqüela irreparável da incontinência anal que gera alta morbidade ao paciente.

Unitermos: Behcet, fístula, vasculite

INTRODUÇÃO
As fístulas anorretais, processos supurativos crônicos, em 95% dos casos, se iniciam pela infecção da cripta, se propagam às glândulas anorretais, drenagem do abscesso e formação do trajeto, quando o tratamento cirúrgico é mandatório. Em 5% dos casos, a etiopatogenia não obedece a ordem anteriormente descrita. É importante para indicação do tratamento a precisão do diagnóstico diferencial, quando este poderá ser cirúrgico ou não.
    Apresenta-se um caso de fístula anorretal complexa por doença de Behcet com o objetivo de enfatizar a importância de um tratamento cirúrgico adequado, evitando a seqüela irreparável da incontinência anal que gera grande morbidade ao paciente.

RELATO DE CASO
PCRA, 35 anos, natural de São Paulo, residente em Pouso Alegre. Queixa Principal: dor para evacuar. História da Moléstia Atual: Paciente já estava internado com hipótese diagnóstica de doença de Behcet após ter sido submetido a endoscopia digestiva alta que evidenciou lesões aftóides em mucosa oral, terço médio e distal do esôfago. A colonoscopia mostrou lesões aftóides com as mesmas características das do trato digestivo alto. Feita a biópsia com resultado anatomopatológico sugestivo de Doença de Behcet. Solicitada avaliação do Serviço de Coloproctologia, pois o paciente apresentava quadro de febre arrastada há 20 dias, associada a tenesmo, dor anal, com sensação de queimação após evacuação, parestesia em cavidade oral, úlceras orais, disfagia, adinamia, prostração, mialgia e emagrecimento de 20 quilos em um mês. No exame físico apresentava à inspeção plicoma com edema importante, úlcera anal grande, no nível da linha pectínea, não sendo possível completar o exame devido a dor intensa. Evoluiu, 24 horas depois, com drenagem de grande quantidade de secreção purulenta espontânea, formando uma fístula complexa, alta, dissecante. Após melhora do quadro, o paciente foi submetido à exploração cirúrgica da fístula, sendo optado por limpeza local e colocação de sedenho, isolando a massa esfincteriana. Feito estudo da fístula com ressonância magnética (Figura-1) que demonstrou trajeto complexo retrorretal, extenso, até a vértebra sacra. Realizada colostomia

 
Figura 1 - Ressonância magnética: trajeto fistuloso, retrorretal, supra-esfincteriano, alto, até a vértebra sacra (seta)


DISCUSSÃO
Em 1937, Hulusi Behcet, um dermatologista turco, descreveu uma Síndrome caracterizada por úlceras orais e genitais recorrentes e uveíte de causa idiopática3.
    A Síndrome de Behcet é uma desordem inflamatória , multissistêmica e complexa, de caráter crônico, podendo ter remissão espontânea e muito parecida com as doenças autoimunes1-4,6.
    O curso ativo da doença dura poucas semanas com intervalo de meses a anos entre as crises. Manifesta-se mais em pacientes acima de 20 anos de idade, adulto jovem. Acometem tanto homens quanto mulheres, sendo mais graves em homens. Têm relatos que a doença pode iniciar-se desde 2 anos de idade até 70 anos ou mais. Três casos foram descritos em recém natos de mães portadoras da doença1,3.
    A doença neonatal é caracterizada por estomatite aftóide e manifestações de pele que desaparecem espontaneamente em 6 meses.
    A transmissão da doença de mãe para filho pode ser causada por anticorpo específico que atravessa a barreira placentária.
    A Síndrome de Behcet (SB) é raramente diagnosticada em crianças e é considerada como diagnóstico diferencial das desordens inflamatórias multissistêmicas.
    A revisão da literatura sugere que o quadro clínico da SB na criança difere do adulto pois apresenta menor freqüência da doença ocular. Inclui neutropenia, esplenomegalia, Síndrome Budd Chiari que é caracterizada por infiltrado pulmonar e ruptura do aneurisma da artéria pulmonar 1,3.
    A epidemiologia é desconhecida.
    Incide com maior freqüência no Oriente Médio, predominando na Turquia e Irã. Afeta mais adultos jovens. No Japão e na Coréia parece que a predominância em mulher é insignificante.
    Embora a complexa tríade de sintomas de úlcera aftóide oral, uveíte, e úlcera urogenital foram descritas múltiplas vezes de 1800 a 1900, esses sintomas eram tipicamente atribuídos a outros processos como tuberculose e sífilis.
    Após a publicação de Hulusi Behcet, de uma série de três pacientes acometidos por uma combinação da tríade em 1936, a Síndrome de Behcet começou a ser reconhecida como entidade distinta na moderna literatura médica. Simultaneamente às publicações de Behcet foram publicados casos por Adamantíades; entretanto, o nome Behcet foi consagrado nos dias de hoje.1,4,6
    Com relação à etiopatogenia a SB é uma das poucas formas de vasculite que tem predisposição genética conhecida. Não é considerada hereditária.
    A presença do gene HLA-B51 é um fator de risco para esta doença. A presença primária deste gene não é a causa da doença. Muitos possuem o gene e poucos desenvolvem a doença. Apesar da predisposição conferida pelo gene para doença de Behcet, casos familiares são a regra. Acredita-se que a interação da genética com fatores como infecção e exposição ambiental estejam envolvidos. O sistema imunitário, que normalmente protege o corpo contra infecções, produzindo inflamações controladas, torna-se hiperativo e passa a produzir inflamações imprevisíveis, exageradas e não controladas. No caso da SB estas inflamações podem afetar qualquer estrutura 1,3,4,6.
    Quanto à prevalência, a SB tem uma distribuição universal. É rara nas Américas e Europa, sendo mais prevalente e mais virulenta na Turquia, Oriente Médio e Extremo Oriente. Em Hoddaido, no Japão, a prevalência é de uma em 1000 pessoas. Afeta principalmente adultos jovens, na 2a e 3a décadas. No norte Europeu 0,3 por 100.000 e no Irã 16 por 100.000 habitantes 6.
    Na SB existe acometimento de vasos sanguíneos independente do tipo e tamanho, envolvendo desde pequenas artérias até grandes veias. Decorrente da variedade destes vasos, as manifestações podem ocorrer em diversos locais do organismo. Entretanto, tem predileção por alguns órgãos e tecidos como trato gastrointestinal, olhos, pele, pulmões, articulações, cérebro e genitais.
    Clinicamente, a ocorrência de úlcera oral é condição indispensável para o diagnóstico. Normalmente são dolorosas, ovais ou redondas, medindo de 2mm a 10mm no maior diâmetro, rasas ou profundas, de bordos hiperemiados, com leito recoberto por fibrina amarelada, encontradas em qualquer local da cavidade oral, únicas ou múltiplas, sendo esta a forma mais comum. As úlceras quando pequenas, involuem em 1 a 2 semanas sem deixar cicatrizes. As maiores são mais persistentes e desaparecem, podendo deixar cicatrizes. Quanto à recorrência, as úlceras se manifestam pelo menos 3 vezes no ano. Outra apresentação das lesões pode ser na forma de foliculite, eritema nodoso, fotossensibilidade, exantema tipo acne e infrequentemente vasculite. É o primeiro sintoma em 50% a 70% dos pacientes, mas no curso da doença aparece em 98% dos pacientes.
    As ulcerações podem ocorrer em qualquer segmento do trato gastrointestinal desde a boca até o ânus. Os locais mais comuns são íleo terminal e ceco, dificultando o diagnóstico diferencial com doença inflamatória intestinal.1,3,4
    As úlceras genitais ocorrem em 80% dos pacientes e têm as mesmas características das úlceras orais.
    O envolvimento cutâneo acomete 70% dos pacientes. Inclui foliculite, lesões tipo pioderma gangrenoso e eritema nodoso, pústulas, vesículas, pápulas, furúnculos, rashes cutâneos, lesões acneiformes e fotossensibilidade.
    O acometimento ocular é comum, incluindo uveíte posterior e anterior. Envolve, freqüentemente, as estruturas adjacentes como retina, vítreo e córneas. A diminuição da acuidade visual resulta da doença venoclusiva retiniana, inflamatória com glaucoma secundário, cataratas ou hemorragia vítrea. A trombose das veias retinianas resultam em cegueira súbita.
    Quanto ao comprometimento articular, a artrite costuma ser intermitente, autolimitada, e localizada nos joelhos e tornozelos. Entretanto são observadas erosões ósseas em radiografias do quadril, calcanhar, punho, joelho, tornozelo e pé.
    O envolvimento venoso é típico e atinge até 25% dos pacientes. É caracterizado por tromboflebite superficial recorrente, trombose venosa intracranial, bloqueio da veia cava superior e inferior e Síndrome de Budd-Chiari.
    As lesões mais comuns no sistema nervoso central são: hipertensão intracraniana benigna, quadro semelhante a esclerose múltipla, meningite asséptica, mielite transversa. Outras manifestações incluem encefalopatia, convulsões, confusão, perda da memória, paralisia bulbar, ataxia, ataque isquêmico transitório, acidente vascular cerebral e pseudotumor cerebral. Essas complicações podem ter início agudo ou incidioso, mas podem regredir por completo.
    Os sintomas do trato gastrintestinal são inespecíficos, como náuseas, vômitos, diarréia e anorexia. São semelhantes às doenças retocolite ulcerativa inespecífica e doença de Crohn.
    O envolvimento de outros sistemas incluem glomerulonefrite, síndrome nefrótica, aneurisma de aorta, miocardite, pericardite, infarto agudo do miocárdio.
    Na literatura não há descrição de caso de úlcera anal evoluindo com fístula anorretal decorrente da agudização da doença 1-4,6.
    O diagnóstico é exclusivamente clínico, baseado em sinais e sintomas que ocorrem com freqüência suficiente para definir a Síndrome.
    De acordo com os critérios internacionais para a classificação da doença, o diagnóstico se baseia na presença de úlceras orais recorrentes, considerado sinal maior e mais dois dos quatro sintomas a seguir: úlcera genital recorrente, acometimento ocular, lesão de pele e teste de Patergia positivo. Este consiste em reação pápulo - pustulosa após injeção intradérmica. A leitura se faz dentro de 24 a 48 horas da aplicação. Se a pústula for maior que dois milímetros, o teste é considerado positivo. No entanto, raramente, paciente com doença em atividade, apresenta o teste positivo.
    A evidência de vasculite no anátomo patológico, que é a alteração mais freqüente, somada ao quadro clínico e após eliminação de outras possíveis causas, levam ao diagnóstico 1,3,4.
    O diagnóstico diferencial inclui herpes simples, úlcera oral aftóide crônica, lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória intestinal, Síndrome de Reiter, SIDA, líquen plano, pênfigo vulgar, eritema multiforme, esclerose múltipla, doença de Lyme, entre outras 2,6.
    Quanto ao prognóstico a gravidade da Síndrome diminui com o tempo. A expectativa de vida parece ser normal, exceto nos casos com complicações neurológicas. A única complicação que seqüela é a cegueira. O paciente masculino e jovem tem risco aumentado de complicação ocular e requer conduta medicamentosa agressiva.
    O corticóide tem sido considerado a droga de eleição para o tratamento da doença. É administrado em ambas situações, agudas e a longo prazo.
    Os imunossupressores são considerados a principal linha de tratamento quando tem acometimento ocular. O uso de azatioprina tem mantido a acuidade visual dos pacientes e prevenido a emergência de nova crise ocular. A ciclosporina é uma alternativa efetiva para a azatioprina, entretanto a nefrotoxicidade, a agudização da doença na interrupção do tratamento e o alto custo da droga limitam o seu uso 1,2,5,6.

CONCLUSÃO
O diagnóstico de doenças raras geralmente é difícil e tem que ser auxiliado pelo exame anátomo-patológico. Quando a evolução destas doenças é atípica, devemos ter cuidado na indicação do tratamento. Por isso enfatizamos a importância de um tratamento cirúrgico adequado no caso em tela, com a finalidade de evitar a seqüela irreparável caracterizada por incontinência anal que gera alta morbidade ao paciente.

SUMMARY: This is a case report of a 35 years old male pacient with a complicated anorretal fistula caused by Behcet's Syndrome, considered an auto-imune disease It's main anatomopatological alteration is vasculitis. Due to presence of the aftoid ulceration on the dentate line developed an infeccion and an anorretal abscess with spontaneous drainage and development of a height fistulous tract, at promontorious level, involving large quantity of sphincteric muscular mass and pelvic floor. We alert the importance of an adequate surgical treatment avoiding the irreparable injury (fecal incontinence) that may creat a big morbidity to patient.

Key words: Behcet, fistula, vasculitis

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Araújo VFL. Behcet's syndrome. Disponível em : http://www.medstudents.com.br/reumat/reumat1.html
2. Ball EV. Doença de Behcet. In : Goldman L, Bennett JC. Cecil tratado de medicina interna. 21. Ed. Rio de janeiro: Guanabara Koogan; 2001. P.1716 - 17.
3. Behcet disease. Disponível em : URL: http://www.mc.vanderbilt.edu/peds/pidl/allergy/index.html
4. Hellmann D. Behcet's disease. Disponível em : http://www.vascultit.med.jhu.edu/typesof/behcets.html
5. MacCormak M, Philips T. Behcet's disease : a clinical review. Disponível em : http://www.medscape.com/viewarticle/444060
6. Treatments for Behcet's disease. Disponível em http:www.behcets.com/treatments.ivnv

Endereço para correspondência:
Virgínio Cândido Tosta de Souza
Travessa Monsenhor Mendonça, 80 - Centro
37.550-000 - Pouso Alegre (MG)
Fone: (35) 3421-1972
Fax: (35) 3421-1748
E-mail: virginio_souza@hotmail.com 

Trabalho realizado no Serviço de Colopoctologia do Hospital das Clínicas Samuel Libânio e na Disciplina de Coloproctologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Vale do Sapucaí (UNIVAS).