RELATO DE CASOS
ENDOMETRIOSE COLÔNICA SIMULANDO CÂNCER COLORRETAL - RELATO DE DOIS CASOS
Colonic Endometriosis Simulating Colorectal Cancer: Report of 2 Cases
Ademar Garcia1; Bruno Spadoni
Neto2; Victor Cezar Sano
Garcia2; Priscila Arruda3;
Daniela Laila Garcia3
1
RESUMO: A Endometriose constitui doença enigmática de etiologia incerta e caracteriza-se pelo implante ectópico, extra-uterino, de tecido endometrial funcionante. Sua apresentação clínica comum é de sangramento retal cíclico, associado com período menstrual e queixas como dispareunia, dismenorréia e infertilidade. Porém sua apresentação pode variar, simulando tumores colorretais e apresentando sintomas como tenesmo e sangramento retal. O diagnóstico é anatomopatológico e muitas vezes elucidado após ressecção cirúrgica. O tratamento pode ser clínico ou cirúrgico, dependendo da idade, desejo de ter filhos, acometimento da lesão endometrial no trato gastrintestinal. Objetivo : relatar dois casos de Endometriose Colônica, simulando câncer colorretal, diagnosticados no serviço de Cirurgia Geral do Hospital Geral Universitário da Universidade de Cuiabá, e dissertando sobre a doença e formas de tratamento.
Descritores: Endometriose, Neoplasias Colorretais, sangramento retal.
Introdução
A Endometriose constitui uma doença
enigmática de etiologia incerta e caracteriza-se pelo
implante ectópico, extra-uterino, de tecido
endometrial funcionante. Estima-se que a patologia esteja
presente em 10% a 15% das mulheres em idade reprodutiva
(5). Apresenta prevalência de 4,5 a 33,3% em
mulheres submetidas a tratamento de esterilidade; 4,5 a
21,2% entre as pacientes atendidas com dor pélvica e 0
a 7,1% nas portadoras de tumoração pélvica
( 3,7).
Os implantes endometriais extra-uterinos usualmente estão confinados à pelve, na região dos
ovários, dos ligamentos útero-sacros e fundo de
saco peritonial; porém, podem aparecer no
trato gastrointestinal, trato urinário, sistema pulmonar,
SNC, pele e musculatura estriada. A prevalência exata
da endometriose extra-uterina não é bem conhecida.
A faixa etária mais comum para início dos sintomas é
de 34 a 40 anos (4).
A endometriose intestinal é um
acontecimento não raro cujos sítios de maior acometimento são o
reto-sigmóide (73%) e o septo reto-vaginal (13%)
(3,6,9,10,11). As lesões mais freqüentes acometem as
camadas serosa e muscular própria, e raramente podem ser
mais profundas, comprometendo a mucosa intestinal.
Os principais sintomas são dores pélvicas, constipação
e/ou diarréia recorrente, flatulência, distensão
abdominal, puxo, tenesmo. Nos casos em que há
acometimento da mucosa ou submucosa intestinal
ocorre hematoquezia periódica de intensidade variável,
principalmente acompanhando o período menstrual, mas
às vezes ocorre sangramento anal isolado. O
diagnóstico e o manuseio da endometriose intestinal são
difíceis, sendo fundamental o diagnóstico diferencial com
outras doenças do cólon e especialmente com o
câncer colo-retal, para que o tratamento correto seja
adotado e procedimentos cirúrgicos extensos sejam evitados.
Apresentamos dois casos de mulheres jovens com endometriose colônica que se manifestou na
forma tumoral.
Relato do Caso 1
SBSS, branca, 35 anos, brasileira, deu entrada no serviço de cirurgia geral com queixa de que há
um ano sente dor em cólica de forte intensidade no
abdome inferior, com a sensação de querer evacuar,
com periodicidade de ocorrer uma a duas vezes por mês
e que melhorava com uso de antiespasmódicos.
Notou surgimento de uma tumoração no abdome inferior
nos últimos 3 meses e que as fezes tornaram-se
mais afiladas que o normal, sendo que nos últimos dois
meses apresentou hematoquezia, razão que a levou a
procurar o proctologista.
Como antecedente pessoal informou que fez histerectomia total mais ooforectomia direita, além
de ooforectomia parcial à esquerda há três anos,
por endometriose. Faz acompanhamento regular com
seu ginecologista que solicitou várias vezes a realização
de USG pélvica, a qual vem mostrando apenas um
cisto no ovário esquerdo remanescente e confirmando
ausência cirúrgica do útero e do ovário direito. Ao
exame físico, observava-se a presença de uma massa
palpável no hipogástrio, fixa, de consistência
fibro-elástica, indolor e que, ao toque retal, comprimia
extrinsecamente a parede anterior do reto, sem ulceração na mucosa,
a cerca de 7 cm da borda anal e com presença de
pequena quantidade de sangue na luva após o toque.
O toque vaginal confirmou a presença de tal massa,
fixa na parede posterior da vagina, comprimindo o reto
e estendendo-se para a cavidade peritoneal.
A colonoscopia mostrou rigidez da parede colônica com mudança no pregueado mucoso,
estendendo-se por cerca de 6 cm a partir de 9 cm da
borda anal, e revelou também a 12 cm da borda
anal, uma pequena formação vegetante de
aspecto esbranquiçado, endurecida, sem sangramento e que
foi biopsiada resultando em processo inflamatório
crônico inespecífico. O enema opaco mostrava falha de
enchimento na silhueta do reto por provável
processo infiltrativo, numa extensão de cerca de 5 cm,
iniciando-se a 8 cm da borda anal. Os vários laudos de
USG realizados anteriormente confirmaram apenas a
presença de uma massa cística na FID com cerca de
70 cm³, sugestiva de endometrioma e a
tomografia computadorizada do abdome nada acrescentou às
informações já disponíveis.
Dosagens de CEA= 1,2 ng/ml (normal < 5) e CA 125= 25 UI/ml (normal < 35).
Indicada a cirurgia que foi realizada em 21/08/2004 e mostrou a presença de duas massas císticas
na pelve, intimamente aderidas às estruturas
contíguas, porém sem fazer comunicação entre elas. Na
topografia do ovário esquerdo encontramos a trompa e o
ovário com uma formação cística de cerca de 50 cm³,
intimamente aderida à parede anterior do reto, de
forma a constituir um trajeto fistuloso (Figura 1).
Figura 1 - Peça cirúrgica do reto mostrando o orifício fistuloso na parede anterior do reto (ponta da pinça) e alguns endometriomas. |
Realizamos a ressecção da massa cística
localizada na pelve, à direita. Também
realizamos ressecção segmentar do reto-sigmóide em
monobloco com o ovário e a trompa esquerda (juntamente com
o cisto) e confeccionamos anastomose manual
primária término-terminal, do sigmóide restante com o reto.
O exame histopatológico confirmou o
diagnóstico de endometrioma nas três peças enviadas
(cisto direito, cisto ovariano esquerdo e reto, onde havia
um trajeto fistuloso).
A evolução pós-operatória da paciente foi
excelente e ela se encontra assintomática até a
presente data (08/04/2005).
Relato do Caso 2
VRJP, 34 anos, branca, brasileira, foi atendida no serviço de cirurgia geral com queixa de dor
intensa ao evacuar, de início há um ano, que ocorria no
primeiro dia da menstruação, que a impedia de realizar
suas atividades habituais e que pouco melhorava com
uso de analgésicos.
Negava alteração do habito
intestinal, mucorréia, sangramento, pus ou protusão anal,
mas referia o surgimento de uma massa endurecida no
abdome inferior, que estava aumentando de volume.
Negava emagrecimento, mas fez tratamento de anemia
no último ano. Como antecedentes pessoais relatou
apenas a realização de uma cesariana há 4 anos,
quando foi feita laqueadura tubária.
A palpação abdominal mostrava
volumosa massa endurecida, fixa, no hipogástrio, lembrando
uma gestação de 4 meses.
O toque revelava sub-estenose do reto a 9 cm da borda anal, que comprometia toda a
circunferência do órgão e comprometia a parede vaginal posterior.
O toque vaginal mostrava infiltração da parede
posterior da vagina, sem ulceração.
Solicitados exames bioquímicos
pré-operatórios, ultra-sonografia e TC do abdome, CEA, CA
125, colonoscopia e enema opaco.
A colonoscopia mostrou estenose do reto,
não conseguindo ultrapassar 9 cm da borda anal. Foi
colhido material para exame histopatológico e o
resultado foi processo inflamatório crônico inespecífico. O
enema opaco mostrou área com aspecto de "mordida de
maçã" no reto, numa extensão de cerca de 6 cm, muito
sugestiva de adenocarcinoma retal (Figura 2).
Figura 2 - O enema opaco mostrando área com aspecto de "mordida de maçã" no reto, numa extensão de cerca de 6 cm, muito sugestiva de adenocarcinoma do reto. |
A ultra-sonografia pélvica mostrou
volume uterino de 409 cm³ com massa cística no ovário
direito, sugestiva de endometrioma e a tomografia computadorizada não acrescentou maiores
informações. O CEA foi de 1,0 ng/ml (normal <5) e o CA
125= 45 UI/ml (normal < 35)
A cirurgia aconteceu em 18/12/2004 quando se realizou histerectomia total, ooforectomia total
bilateral e reto-sigmoidectomia segmentar anterior,
mais apendicectomia. O inventário da cavidade mostrou
presença de formações císticas nos dois ovários, com
conteúdo achocolatado, além de volumosa
hiperplasia uterina que comprimia todas as estruturas pélvicas.
A parede anterior do sigmóide e do reto intraperitoneal apresentava-se comprometida por
um processo fibrótico endurecido, esbranquiçado e
que causava sub-estenose da luz intestinal.
Foi feita anastomose mecânica primaria sigmóide-retal e a paciente evoluiu muito bem no
pós-operatório, estando assintomática até a presente
data (08/04/2005).
O exame histopatológico das peças
cirúrgicas mostrou leiomioma uterino, cistos hemorrágicos de
corpo lúteo nos dois ovários, trompas e apêndice
cecal normais. O exame do segmento intestinal
ressecado confirmou endometriose que comprometia a parede
do sigmóide desde a serosa até a submucosa.
DISCUSSÃO
A Endometriose intestinal acomete 5% das mulheres com endometriose pélvica
(3,6,9,10). As áreas do trato gastrointestinal mais acometidas são o reto
e o cólon sigmóide em 75-90%, sendo o íleo distal
acometido em 2 a 16% e o apêndice cecal em 3 a
18%, manifestando-se mais freqüentemente na forma
de "spots" na serosa e na muscular própria, levando
a fibrose e/ou estenose, sendo que a mucosa é
raramente afetada (3,10).
A endometriose intestinal pode surgir como sangramento retal cíclico ou não, dor abdominal
pélvica, constipação, obstrução intestinal e raramente
pode manifestar-se na forma de perfuração ou
malignização. É importante salientar que a presença da tríade
clássica da endometriose (dismenorréia, dispareunia
e infertilidade) contribui para aumentar a suspeita
da doença intestinal concomitante, apesar de que
nem sempre se manifeste em sua forma clássica.
Os exames complementares devem ser solicitados na tentativa de afastar patologias intestinais
mais freqüentes e que podem apresentar os mesmos
sintomas, como as neoplasias, doenças inflamatórias,
colite isquêmica, colite pós-radiação, doença diverticular
e até mesmo infecções. Radiologicamente, o
enema baritado poderá auxiliar, mostrando lesões
estenosantes, polipóides ou ambas no cólon e alguns autores
recomendam como o primeiro exame a ser solicitado
na suspeita de endometriose intestinal.
A colonoscopia e/ou retossigmoidoscopia deverão ser realizadas na tentativa de visualizar a
característica macroscópica da lesão e de retirar
fragmentos para biópsias, guiando-nos para o
planejamento correto do tratamento, apesar de que a
biópsia endoscópica usualmente proporciona material
insuficiente para o diagnóstico patológico definitivo.
Vários autores afirmam que a laparoscopia é o "padrão
ouro" para firmar o diagnóstico de endometriose
(3,6,7,9,10,11).
O tratamento da endometriose intestinal
pode ser cirúrgico ou hormonal, dependendo da idade,
do desejo de manter a fertilidade, da severidade e
complicações da doença. Recentemente o tratamento
cirúrgico laparoscópico vem avançando estágios e
provando-se factível e eficaz.
As medicações utilizadas no tratamento
da endometriose são o Danazol, altas doses
de progestágenos e os agonistas de GnRH, todos com
eficácia semelhante. Danazol e os agonistas de
GnRH possuem custo semelhante, porém o segundo é
melhor tolerado.
O tratamento cirúrgico da endometriose
intestinal colônica é muito discutido e controverso, porém
a tendência dos últimos estudos é de realizar a
ressecção segmentar da lesão com o objetivo de aliviar os
sintomas e prevenir a neoplasia endometrial; a
ooforectomia e o tratamento hormonal ficam indicados nas
pacientes oligossintomaticas com endometriomas
colorretais menos extensas (6,10,11).
Os casos relatados anteriormente chamam a atenção pela semelhança clínica que a
endometriose intestinal pode ter com as neoplasias do cólon e
que seu diagnóstico é presuntivo e nem sempre pode
ser afirmado anteriormente à cirurgia, assim como os
exames complementares e a patologia podem ser inconclusivos, não contribuindo para diferenciar
a endometriose de uma neoplasia de cólon
(1,2,6,10).
ABSTRACT: The endometriosis is an enigmatic pathology that has an uncertain etiology and is characterized by ectopic implant of functional endometrial tissue. Its most common clinical presentation is periodic abdominal pain associated with menstrual period, infertility, and complaints of dyspareunie and dysmenorrheal, but its presentation can also varies, simulating colorectal tumors by presenting symptoms like tenesm and rectal bleeding. The diagnoses is made by the anatomopathologic exam and mostly explained after surgical resection. The treatment can be done clinically or surgically, depending on the age, desire to have children and the development of endometrial lesion in the gastrointestinal tract. The aim of this work is relating two cases of colonic endometriosis simulating colorectal cancer, diagnosed at the surgical service of the Hospital Geral Universitário de Cuiabá, and dissertating about the pathology forms and its treatment.
Key words: Endometriosis, Colorectal neoplasm, rectal bleeding.
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Endereço para correspondência:
Bruno Spadoni Neto
Rua Antônio Dorileo, 128 - Bairro Coophema
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Tel: (65) 9973-1770 / Fax: (65)3661- 6795
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Recebido em 14/02/2006
Aceito para publicação em 10/04/2006
Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia Geral do Hospital Geral Universitário da Universidade de Cuiabá - Mato Grosso - Brasil.