RELATOS DE CASOS
CÂNCER EM DOENÇA DE CROHN: RELATO DE CASO
Cancer in Crohn's Disease: Case Report
Fernando ValErio1; Raul Cutait2; Aytan Sipahi3; Aderson DamiÃo4; KÁtia LeitE5
1Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva; 2 Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 3Chefe da Enfermaria de Gastroenterologia Clínica do Departamento de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas e Chefe do Grupo de Intestino da Disciplina de Gastroenterologia Clínica do Hospital das Clínicas; 4 Professor Assistente da Disciplina de Gastroenterologia Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 5 Doutora em Patologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Patologista do Laboratório de Patologia Cirúrgica e Molecular do Hospital Sírio e Libanes.
RESUMO: Apesar de se reconhecer que existe um maior risco de câncer em portadores de doença de Crohn (DC), até o presente momento foram descritos menos de 150 casos na literatura mundial. Os principais fatores de risco são a instalação precoce, a longa evolução da doença, a ocorrência de doença fistulosa crônica e a presença de alça exclusa comprometida. Relato de caso. Paciente MCAN, de 53 anos de idade, do sexo feminino, de cor branca, havia sido submetida à ileocolectomia direita aos 17 anos, por obstrução intestinal, decorrente de DC em íleo distal. Há um ano, devido a novo quadro obstrutivo, foi submetida a laparotomia exploradora quando se encontrou massa na região da anastomose ileocólica, caracterizada como adenocarcinoma mucossecretor. Discussão: Na maioria dos casos relatados, o câncer instala-se muitos anos após o início dos sintomas, ocorrendo em cerca de 80% dos pacientes após 20 anos do diagnóstico de DC. O tumor é habitualmente de crescimento insidioso e leva à obstrução intestinal. Apenas 10% dos pacientes sobrevivem dois anos livres da doença. O presente caso mostra características identificadas na maioria dos pacientes com DC que desenvolvem neoplasia de intestino delgado: tumor se desenvolvendo muitos anos após a instalação da enfermidade e com comportamento agressivo.
Descritores: Doença de Crohn; câncer.
INTRODUÇÃO
A relação entre a doença de Crohn (DC) e
a presença de lesões malignas ainda não foi bem
definida. No entanto, estima-se um maior risco de
desenvolvimento de adenocarcinoma de intestino delgado
em pacientes com DC do que na população em geral,
sendo que, até o presente, foram descritos menos de
150 casos na literatura
mundial1,2,3,4,5. O número de
relatos dessa associação vem crescendo nos últimos
anos, provavelmente em decorrência de uma maior
preocupação quanto à malignização das lesões
granulomatosas da DC e pela melhoria constante dos métodos
diagnósticos de imagem6, além de evoluções mais longas.
O primeiro relato associando o câncer à
DC foi de Ginzburg et al7 que em 1956 publicaram
um caso de adenocarcinoma assestado em segmento de jejuno comprometido por DC em paciente com 30
anos de idade. No Brasil, o primeiro relato de caso de
câncer associado à DC foi feito por Mincis et
al8 em 1982. Posteriormente, quatro novos casos foram também
relatados9. No presente trabalho, os autores relatam
um caso de adenocarcinoma de intestino delgado em
paciente com DC por eles tratado e discutem
características clínicas, fatores de risco e a história natural
desse tumor em portadores de DC.
RELATO DE CASO
A paciente M.C.A.N., de 53 anos de idade, do sexo feminino, de cor branca, foi submetida, aos
17 anos de idade, à ileocolectomia direita por
obstrução intestinal, decorrente de DC que comprometia o
íleo distal. Desde então, apresentava ocasionalmente
dores abdominais em cólica. Com 52 anos
desenvolveu quadro de obstrução intestinal, tendo sido submetida
à laparotomia exploradora, quando se encontrou
massa que comprometia a anastomose ileocólica, a qual
foi ressecada com o diagnóstico presuntivo de
recidiva da doença. No entanto, o exame
anatomopatológico demonstrou a presença de
adenocarcinoma mucossecretor, com células em anel de
sinete, infiltrando a parede intestinal até o tecido adiposo
periférico e com amplo comprometimento linfonodal.
Por este motivo, a paciente foi reoperada para
ampliação das margens de ressecção, sendo que alguns
pontos esbranquiçados em peritôneo visceral, inicialmente
interpretados como fibrose ou decorrentes de
aderências, eram na realidade implantes metastáticos.
A paciente foi, então, submetida
à quimioterapia, mas após alguns meses desenvolveu
novo quadro de obstrução intestinal, requerendo
ressecção segmentar limitada. Após seis meses, foi reoperada
em decorrência de novo episódio de obstrução, desta
vez decorrente de importante carcinomatose miliar,
tendo sido realizada lise de aderências tumorais e
inflamatórias e ressecção de massa metastática em ovário
direito. Três meses após apresentou novo quadro
obstrutivo, que não se resolveu cirurgicamente, vindo a falecer
no período pós-operatório.
DISCUSSÃO
A DC pode ser encontrada em todo o tubo digestivo, sendo que compromete preferencialmente
íleo distal e cólon (30 a 55%), intestino delgado, quase
sempre em seu segmento distal (25 a 35%) e cólon (15
a 25%)10,11. No câncer do intestino delgado, a
localização mais comum é o íleo distal (73 a 76%), ao
contrário do que acontece na população geral, em que
o duodeno e o jejuno são os segmentos mais
acometidos1,5,12,13,14,15. A ocorrência desse tumor é maior
no sexo masculino (3:1), e a faixa etária dos pacientes
no momento do diagnóstico é mais precoce (45 a 50
anos), quando comparados aos carcinomas do intestino
delgado (65 anos)1,2,5,12,15,16.
Os fatores de risco para o desenvolvimento de câncer em DC não estão ainda adequadamente
definidos, mas se aceita a instalação precoce e a longa
evolução da doença inflamatória como fatores
associados de risco5,14,16,17. Na maioria dos casos relatados, o
câncer instala-se muitos anos após o início dos
sintomas, ocorrendo em 79% dos pacientes após 20 anos do
início da DC, e em 53% após 30
anos6,13,17. Em nossa paciente tal fato também é observado, já que a
paciente apresentou tumor após 35 anos do diagnóstico
da doença inflamatória. Jess et
al18, em recente metanálise, mostram que o risco de desenvolvimento de
câncer em DC não depende da extensão da doença, mas
de sua localização, sendo maior em cólon e reto e
menor quando apenas o íleo se encontra comprometido
(incidência de 3.4 a 66.7%, média de 27.1%). Canavan
et al.19, por sua vez, também por meio de metanálise,
concluem que o risco relativo de câncer em DC de
delgado é de 33.2.
Fístulas êntero-cutâneas ou
êntero-entéricas são relativamente comuns em pacientes com DC,
mas a sua associação com o desenvolvimento tumoral
é infreqüente. Sugere-se que o adenocarcinoma
possa se desenvolver em sítios de fístulas devido ao
estímulo constante de regeneração
mucosa20. Alguns autores questionam esta afirmação e não descrevem
casos semelhantes em seus estudos, acreditando que a
doença fistulosa é decorrente da própria lesão
tumoral1,16,20.
O risco do desenvolvimento deste tipo de tumor se apresenta aumentado em pacientes
portadores de alças intestinais exclusas. De acordo com
Greenstein e cols.4, um terço dos casos de adenocarcinoma
de intestino delgado ocorreram neste tipo de paciente.
No entanto, Lashner16 questiona essa afirmação,
sugerindo que o risco não aumenta simplesmente pela
exclusão de alça e, sim, pela presença de alças
intestinais com doença ativa por longo tempo, predispondo
ao desenvolvimento neoplásico. O fato é que
as anuloplastias não parecem predispor ao
aparecimento de câncer21.
O desenvolvimento tumoral em uma alça intestinal exclusa deve ser suspeitado nos casos com
história pregressa longa de DC, em que há uma
recidiva tardia dos sintomas, e principalmente quando estes
são associados a fístulas ou massas
abdominais4. Desta forma, nos casos em que os pacientes com DC
são submetidos a tratamento cirúrgico e não há
contra-indicação de ressecção, esta deve ser realizada
como tratamento de escolha22.
Os principais sintomas relacionados com o
câncer na DC são dor abdominal, obstrução intestinal,
massa abdominal palpável, perfuração e sangramento,
sendo, em geral, não distinguíveis daqueles da doença em
atividade, o que dificulta e até mesmo impede o
diagnóstico pré-operatório do
tumor12,15,17,22. Em cerca de 65% dos casos, o diagnóstico de câncer é realizado
após laparotomia exploradora devido a
quadro obstrutivo12,15,17.
O aspecto mais indicativo de agressividade dos tumores associados à DC relaciona-se com seu
tipo histológico, já que em 50% dos casos estes
são mucossecretores e pouco
diferenciados23. De fato, apenas 10% dos pacientes sobrevivem dois anos
livres da doença1,5,14,15,16,17.
Embora a seqüência displasia-carcinoma
não tenha sido estabelecida claramente na DC,
acredita-se que a maioria dos casos de adenocarcinoma
nestes pacientes seja precedida de displasia. Do ponto de
vista patológico, a displasia possivelmente constitui
uma lesão pré-maligna importante, já que o exame
cuidadoso da peça cirúrgica tem permitido comprovar, na
maioria das vezes, áreas de tecido displásico
adjacentes ao tumor1,5,6,14. Este achado anatomopatológico
também foi observado no caso por nós descrito, o que
está de acordo com as proposições de que o
potencial oncogênico da DC se associa à displasia.
Apesar do risco de câncer em DC, não
existem orientações definidas quanto à necessidade e
periodicidade de exames preventivos quando do envolvimento exclusivo de intestino delgado, à
semelhança de consenso para DC de cólon
24.
CONCLUSÃO
O caso apresentado mostra
características observadas na maioria dos pacientes com doença
de Crohn que desenvolvem neoplasia: tumor
desenvolvendo-se muitos anos após a instalação da
enfermidade, de alta agressividade, com diagnóstico definido
pela cirurgia e prognóstico bastante reservado.
ABSTRACT: Although Crohn's disease (CD) is associated with an increased risk for developing cancer, there are less than
150 cases reported in the world literature. Main risk factors include early onset, a long period of disease, chronic fistulous
disease and excluded bowel presence. Case report. MCAN, 53 years old, female, white, has been submitted to a right ileocolectomy at
the age of 17, due to bowel obstruction caused by distal ileum CD. A year ago, she presented a new obstructive episode and
at laparotomy a tumor mass was identified in the ileocolic anastomosis. Pathology confirmed a mucinous adenocarcinoma.
Discussion. The majority of patients with CD who develop intestinal cancer have in common the following items: cancer installs many
years after the first symptoms, in around 80% of the cases after 20 years of the CD diagnosis; bowel obstruction is the main
problem; lesions are very aggressive, and only 10% of the patients remain two years free of the disease.
Key words: Crohn disease; cancer.
REFERÊNCIAS
1. Bernstein D, Rogers A. Malignancy in Crohn's Disease. Am
J Gastroenterol, 1996; 91: 434-440.
2. Darke SG, Parks AG, Grogono JL, et al. Adenocarcinoma
and Crohn's disease. Br J Surg, 1973; 60: 169-175.
3. Gillen CD, Wilson CA, Walmsley RS, et al. Occult small
bowel adenocarcinoma complicating Crohn's disease: a report of
three cases. Postgrad Med J, 1995; 71: 172-174.
4. Greenstein AJ, Sachar D, Pucillo A, et al. Cancer in
Crohn's disease after divisionary surgery. Am J Surg, 1978; 135: 86-90.
5. Ramos CR, Guillén P, Palomo MJ, et al. Adenocarcinoma
de intestino delgado y enfermedad de Crohn. Rev Esp Enf
Digest, 1997; 89: 321-324.
6. Korelitz BI. Carcinoma of the intestinal tract in
Crohn's disease: results of a survey conducted by the
National Foundation for Ileitis and Colitis. Am J Gastroenterol,
1983; 78: 44-46.
7. Ginzburg L, Schneider KM, Dreizin DH, et al. Carcinoma
of the jejunum occurring in a case of regional enteritis.
Surg, 1956; 39: 347-351.
8. Mincis M, Goldenberg S, Fainzilber S, et al. A
associação entre moléstia de Crohn e adenocarcinoma de íleo
terminal. Rev Col Bras Cir, 1982; 9: 111-115.
9. Habr-Gama A, Teixeira MG, Vieira MJF, et al.
Associação Doença de Crohn e câncer: relato de 4 casos. Rev Bras
Colo-Proct, 1990; 10: 77-82.
10. Gyde SN, Prior P, Macartney JC, et al. Malignancy in
Crohn's disease. Gut, 1980; 21: 1024-1029.
11. Kvist N, Jacobsen P, Norgaard HH, et al. Malignancy
in Crohn's disease. Scand J Gastroenterol, 1986; 21: 82-86.
12. Fresko D, Lazarus SS, Dotan J, et al. Early presentation
of carcinoma of the small bowel in Crohn's disease
("Crohn's carcinoma"). Gastroenterology, 1982; 82: 783-789.
13. Hawker PC, Gyde SN, Thompson H, et al.
Adenocarcinoma of the small intestine complicating Crohn's disease. Gut,
1982; 23: 188-193.
14. Marchetti F, Fazio VW, Ozuner G. Adenocarcinoma
arising from a strictureplasty site in Crohn's disease. Dis
Colon Rectum, 1996; 39: 1315-1321.
15. Senay E, Sachar DB, Keohane M, et al. Small bowel
carcinoma in Crohn's disease. Cancer, 1989; 63: 360-363.
16. Lashner BA. Risk factors for small bowel cancer in
Crohn's disease. Digest Dis Sci, 1992; 37: 1179-1184.
17. Ribeiro MB, Greenstein AJ, Heimann TM, et
al. Adenocarcinoma of the small intestine in Crohn's
disease. Surg Gynecol Obst, 1991; 173: 343-349.
18. Jess T, Gamborg M, Matzen et al. Increased risk of
intestinal cancer in Crohn's disease: A meta-analysis of
population-based cohort studies. AM J Gastroenterol 2005;100:2724-2729
19. Canavan C, Abrams KR, Mayberry J. Aliment
Pharmacol Therf 2006;23:1097-1104
20. Church JM, Weakley FL, Fazio VW, et al. The
relationship between fistulas in Crohn's disease and associated
carcinoma. Dis Colon Rectum, 1985; 28: 361-366.
21. Fearnhead NS, Chowdhury R, Box B, et al. Long-term
follow-up of strictureplasty for Crohn's disease. Br J
Surg 2006;93:475-482
22. Frank JD, Shorey BA. Adenocarcinoma of the small
bowel as a complication of Crohn's disease. Gut, 1973; 14:
120-124.
23. Bachwich DR, Lichtenstein GR, Traber PG. Cancer
in inflamatory bowel disease. Med Clin North Am, 1994;
78: 1399-1412.
24. Itzkowitz S, Present DH. Consensus conference:
Colorectal screening and surveillance in inflammatory bowel
disease. Inflamm Bowel Did 2005;11:314-321
Endereço para correspondência:
Raul Cutait
Rua Adma Jafet, 50 - 6o. andar
1.308-50 - São Paulo (SP)
E-mail: rcutait@hsl.org.br
Recebido em 28/08/2006
Aceito para publicação em 22/09/2006
Trabalho realizado no Hospital Sírio Libanês _ São Paulo, SP- Brasil