DOENÇAS SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEIS
INDICAÇÕES DA PUNÇÃO LIQUÓRICA NOS PORTADORES DE SÍFILIS
Indications for Cerebrospinal Fluid Punction in Syphilis Patients
Luis Roberto Manzione Nadal1; Sidney Roberto Nadal - TSBCP2
1 Acadêmico do 6º ano da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo - SP - Brasil; 2 Titular da Sociedade Brasileira de Coloproctologia.
Descritores: Sífilis; Neurossífilis; AIDS; Líquido cérebro-raquidiano.
INTRODUÇÃO
O crescimento recente da incidência da
sífilis, principalmente nos últimos 15 anos com a
emergência da AIDS,1 parece conduzir ao aumento dos
casos atípicos observados na prática médica diária.
Sendo assim deveremos estar preparados para o
diagnóstico precoce e o tratamento
adequado.2
A sífilis anal primária é doença comum
dos praticantes do sexo anal receptivo. 3
É causada pelo espiroqueta Treponema
pallidum e tem a úlcera, geralmente única, que
surge no ânus ou no canal anal, duas a seis semanas após
o contato, como primeira manifestação. Todavia,
essas lesões têm morfologia variada e a suspeição
deverá ser feita nos praticantes do sexo anal que tenham
úlceras perianais. 4 As feridas não tratadas
cicatrizam espontaneamente em três ou quatro semanas.
4 Em mais duas a oito semanas poderá ocorrer
o secundarismo sifilítico e, em 10 a 20% dos casos,
aparecerão lesões elevadas nas áreas de contato
(margem anal e sulco interglúteo), chamadas de
condilomas planos. 5
Sua incidência vem crescendo nesse grupo
de doentes em muitas cidades norte-americanas, com
relatos similares no Canadá e na Europa. Em San
Francisco, por exemplo, sua ascensão tem sido
particularmente súbita e acompanhada pelo aumento na incidência
da neurolues. 6 Esse nome se dá à afecção do
sistema nervoso central (SNC) pelo T.
pallidum, podendo ser assintomática ou produzir manifestações clínicas
variadas. 7 A freqüência da co-infecção HIV/sífilis entre
homossexuais masculinos em grandes centros urbanos
varia entre 20 e 70%.8 Nesses casos, a afecção
mostra aspectos atípicos, com úlceras persistentes e rápida
progressão para os estádios mais tardios.
9,10
Só uma minoria das infecções primárias
tem sido detectada. O motivo seriam as
localizações incomuns, a morfologia atípica e a dificuldade em
identificar o agente patogênico.
11 Muitos testes moleculares têm sido propostos, mas nem sempre estão
disponíveis. Porém, a microscopia em campo escuro é
método simples que confirma o diagnóstico.
12 Nas fases mais tardias, que têm múltiplos aspectos, a doença
pode ser confirmada pela sorologia. 11 Nos doentes
HIV-positivos, o diagnóstico sorológico é mais
difícil,8 porque os achados falso-negativos são
freqüentes.9
O tratamento de escolha é com penicilina benzatina, intramuscular, 2,4 milhões de unidades,
uma ou duas vezes, na fase primária, e duas ou três
vezes nas fases tardias. 9 Não foram descritas cepas
resistentes. 13 Nos doentes alérgicos à
penicilina, eritromicina ou tetraciclina, 2 g diários (500 mg,
em intervalos de seis horas), ou doxiciclina, 100 mg, a
cada 12 horas, por via oral, durante 15 a 20 dias são
preconizados. 5,13 O tratamento nos doentes
HIV-positivos deverá ser o
mesmo.14 Entretanto, apesar do tratamento com penicilina diminuir os títulos séricos do
VDRL (Venereal Disease Research Laboratory),
mostrou-se inadequado, em quase todos os doentes
HIV-positivos, na prevenção da recidiva clínica e
sorológica.15,16
Para controle de cura é necessária a
dosagem trimestral dos títulos de VDRL sérico até
completar um ano. 4,5,13 É desejável que esses títulos
permaneçam positivos em até
1:4.4,5,13 Em muitos doentes HIV-positivos, tanto os testes treponêmicos quanto os
não-treponênicos são
falso-negativos,14 principalmente nos doentes com imunodepressão mais acentuada.
A invasão do líquido cefalorraquidiano
(LCR) pode ocorrer nas fases iniciais da doença,
após bacteremia,6,7,17,18 em 20% dos
casos.7 A infecção persistirá em poucos doentes, com risco de evoluir
para neurolues quando não
tratados.6,18,19 Em outros, o agente persistirá por meses após o tratamento, sem
causar sinais ou sintomas de neuropsiquiátricos, mesmo
quando os testes treponêmicos indicarem cura
sorológica.18
As formas clínicas da neurolues
apresentam diversos padrões. A forma primária surge desde
poucas semanas a anos depois da infecção inicial e
acomete as meninges. As síndromes incluem a
meningite sifilítica (geralmente associada com
neuropatias cranianas), a sífilis meningovascular (associada
com acidentes isquêmicos), ou a neurossífilis
assintomática. A fase tardia ocorre desde anos até décadas após
o contágio sob a forma de doença gomosa cerebral,
como as formas parenquimatosas clássicas que afetam
o cérebro (paresia geral e encefalite sifilítica), ou
espinhal, atacando a medula espinhal e as raízes
nervosas (tabes dorsalis).6 Essa última manifestação se
tornou incomum após o início da era dos
antibióticos.20 Pode ainda apresentar deterioração cognitiva
progressiva com episódios de delírio semelhante ao mal
de Alzheimer,7,21 como também quadro focal agudo
similar a um íctus, ou como quadro multifocal
recidivante que lembra a esclerose
múltipla.7 Alguns
indivíduos mostram distúrbios psiquiátricos associados, como
depressão, mania, psicose indistinguível de
esquizofrenia e transtornos de
personalidade.21 Esse polimorfismo faz com que essa enfermidade faça parte do
diagnóstico diferencial de quase todas as síndromes
neurológicas.7
O diagnóstico da neurolues ou sua
exclusão continuam de difícil solução. O
T pallidum não pode ser cultivado
in vitro e as técnicas microscópicas
são trabalhosas. Então, o diagnóstico depende dos
testes sorológicos e do exame do
LCR.6,7,20,22 É descrito que a análise liquórica pode ser benéfica em portadores
da sífilis primária.21 Estudos avaliando portadores de
sífilis latente ou de duração desconhecida
observaram VDRL positivo no líquor, confirmando neurolues
entre 16,2 e 21% dos doentes.17,23,24 E o agente foi
isolado no líquor de 30% dos doentes de sífilis primária ou
secundária não
tratados.22 Entretanto, a neurolues é
improvável quando o VDRL sérico estiver
negativo.14 Nesses casos, a punção do líquor não é
recomendada.23
O exame do LCR deveria ser realizado em todos os doentes com sorologia positiva para sífilis,
ou doença neuropsiquiátrica, ou oftálmica, ou
terciária, naqueles em que a terapia falhou e nos
doentes infectados pelo HIV com sífilis latente ou de
duração ignorada.6,7 O diagnóstico pode ser feito com
razoável certeza quando houver síndrome neuropsiquiátrica
associada com VDRL liquórico positivo. Se o VDRL
for negativo, o FTA-abs (fluorescent treponemal
antibody absorption test) positivo associado com
aumento liquórico das células, das proteínas ou do IgG, é
método usual para identificar a
doença.20,25 O CDC (Center for Disease Control, EUA) e outros órgãos
recomendam que os indivíduos com titulações plasmáticas
não decrescentes por duas ou mais diluições em três
meses pós-tratamento para sífilis primária ou
secundária devem ser avaliados por falha de tratamento e a
punção lombar estará
indicada.14 As seqüelas severas observadas após falha terapêutica descrita em
alguns doentes soropositivos indicam a importância de
seguimento rigoroso.14
Nos doentes HIV-positivo espera-se que o VDRL liquórico normalize 2,5 vezes menos que
na população soronegativa. E, quando as contagens
séricas dos linfócitos T CD4+ forem inferiores a 200
céls/mm3, esse teste regulariza menos 3,7 vezes que naqueles
que têm mais que 200 dessas
células/mm3.26
Doentes soropositivos para o HIV têm maior chance de
desenvolver neurolues,3,27 sendo importante afastar o
diagnóstico em todos esses
casos.10
Entretanto, punção liquórica em todos os
co-infectados HIV/sífilis é controversa. Diretrizes
atuais especificam indicações para a mesma, mas são
pouco claras quanto à recomendação em certas situações
clínicas como sífilis precoce sem envolvimento
neurológico.8 De qualquer forma, os testes treponêmicos
não reativos no LCR auxiliam na exclusão do
diagnóstico de neurolues em doentes com sífilis primária,
evitando complicações neurológicas e psiquiátricas no futuro.
ABSTRACT: The recent increase on the incidence of syphilis, mainly in the last 15 years with the emergence of AIDS, seems
to lead to the augment of atypical cases observed in the dairy medical practice. The frequency in the co-infection
HIV/syphilis among male homosexuals in larger urban centers varies from 20% to 70%. In these cases, ulcers are persistent, and the
evolution to latter stages occurs in a faster way. Among the most severe complications of the untreated or unsuitable treated
disease, neurosyphilis can develop, provoking several neurological and psychiatric symptoms and signals, sometimes disabling.
Diagnosis can be done by cerebrospinal fluid (CSF) punction, permitting to evaluate cells number and proteins abnormalities as
so treponemal and non-treponemal tests. CSF tests should be done in all patients with positive serological tests for syphilis,
in neurological, ophthalmic, or tertiary disease, or in those who have failed therapy, and in HIV-infected patients with late
latent syphilis or syphilis of unknown duration. However, neurolues is unlikely when serologic VDRL is negative. In those
patients, CSF punction is not recommended. But this is reasonable certainly of neurolues when neuropsychiatric syndromes are
present associated to reactive CSF VDRL.
Key words: Syphilis; Neurosyphilis; AIDS; Cerebrospinal fluid.
REFERÊNCIAS
1. Almeida OP, Lautenschlager NT Dementia associated
with infectious diseases. Int Psychogeriatr. 2005;17 Suppl 1:S65-77.
2. Quesada A, Campos L, Rubio C, Martin MA, Herranz
P, Arribas JR et al. [Three cases of early neurosyphilis in
HIV patients.] Actas Dermosifiliogr. 2006;97:395-9.
3. Zellan J, Augenbraun M. Syphilis in the HIV-infected
patient: an update on epidemiology, diagnosis, and management.
Curr HIV/AIDS Rep. 2004;1:142-7.
4. Modesto VL, Gottesman L. Doenças sexualmente
transmitidas e manifestações anais da AIDS. Clin Cir Am
Norte 1994;74:1501-1534.
5. Gottesman L. Anorectal sexually transmitted diseases
and anorectal disease in AIDS. In, Mazier WP, Levien
DH, Luchtefeld MA, Senagore AJ, Surgery of the colon,
rectum and anus. W. B. Saunders, Philadelphia, Pennsylvania,
1st ed., 1995, p. 1017-1027.
6. Jay CA.Treatment of neurosyphilis. Curr Treat
Options Neurol. 2006;8:185-92.
7. Conde-Sendin MA, Hernández-Fleta JL,
Cárdenes-Santana MA, Amela-Peris R. Neurosífilis: formas de presentación
y manejo clínico. Rev Neurol 2002:35;380-6.
8. Chan DJ. Syphilis and HIV co-infection: when is
lumbar puncture indicated? Curr HIV Res. 2005;3:95-8.
9. Korber A, Dissemond J, Lehnen M, Franckson T, Grabbe
S, Esser S.[Syphilis with HIV coinfection] J Dtsch
Dermatol Ges. 2004;2:833-40.
10. Karumudi UR, Augenbraun M. Syphilis and HIV: a
dangerous duo. Expert Rev Anti Infect Ther. 2005;3:825-31.
11. Lautenschlager S. Cutaneous manifestations of syphilis:
recognition and management. Am J Clin Dermatol. 2006;7:291-304.
12. Goh BT. Syphilis in adults. Sex Transm Infect.
2005;81:448-52.
13. Passos MRL, Lopes PC, Almeida Filho GL. Sífilis. In,
Passos MRL, Doenças Sexualmente Transmissíveis. Ed
Cultura Médica, Rio de Janeiro, 3ª ed., 1991 p. 47-71.
14. Rolfs RT, Joesoef MR, Hendershot EF, Rompalo
AM, Augenbraun MH, Chiu M et al. A randomized trial of
enhanced therapy for early syphilis in patients with and without
human immunodeficiency virus infection. N Engl J
Med. 1997;337:307-14.
15. Chan RK. Antimicrobial therapy of non-viral
sexually transmitted diseases - an update. Ann Acad Med
Singapore 1995;24:579-83.
16. Malone JL, Wallace MR, Hendrick BB, LaRocco A Jr,
Tonon E, Brodine SK et al. Syphilis and neurosyphilis in a
human immunodeficiency virus type-1 seropositive
population: evidence for frequent serologic relapse after therapy. Am
J Med 1995;99: 55-63.
17. Marra CM, Critchlow CW, Hook EW 3rd, Collier
AC, Lukehart SA. Cerebrospinal fluid treponemal antibodies
in untreated early syphilis. Arch Neurol. 1995;52:68-72.
18. Riedner G, Rusizoka M, Todd J, Maboko L, Hoelscher
M, Mmbando D, Samky E et al. Single-Dose Azithromycin
versus Penicillin G Benzathine for the Treatment of Early
Syphilis.N Engl J Med. 2005;353:1236-44.
19. Marra CM. Neurosyphilis. Curr Neurol Neurosci
Rep. 2004;4:435-40.
20. Timmermans M, Carr J: Neurosyphilis in the modern era.
J. Neurol. Neurosurg. Psychiatry 2004;75:1727-173
21. Sobhan T, Rowe HM, Ryan WG, Munoz C: Unusual
Case Report: Three Cases of Psychiatric Manifestations
of Neurosyphilis. Psychiatr Serv. 2004;55:830-832.
22. Lukehart SA, Hook EW 3rd, Baker-Zander SA, Collier
AC, Critchlow CW, Handsfield HH. Invasion of the central
nervous system by Treponema pallidum: implications for
diagnosis and treatment. Ann Intern Med. 1988;109:855-62.
23. Wohrl S, Geusau A. Neurosyphilis is unlikely in patients
with late latent syphilis and a negative blood VDRL-test.
Acta Derm Venereol. 2006;86:335-9.
24. Gutierrez-Galhardo MC, do Valle GF, Sa FC, Schubach
Ade O, do Valle AC. Clinical characteristics and evolution of
syphilis in 24 HIV+ individuals in Rio de Janeiro, Brazil. Rev
Inst Med Trop Sao Paulo. 2005;47:153-7.
25. Marra CM, Tantalo LC, Maxwell CL, Dougherty K, Wood
B. Alternative cerebrospinal fluid tests to diagnose
neurosyphilis in HIV-infected individuals. Neurology. 2004; 63: 85-
26. Marra CM, Maxwell CL, Tantalo L, Eaton M, Rompalo
AM, Raines C et al. Normalization of cerebrospinal
fluid abnormalities after neurosyphilis therapy: does HIV
status matter? Clin Infect Dis. 2004;38:1001-6
27. O'donnell JA, Emery CL. Neurosyphilis: A Current
Review. Curr Infect Dis Rep. 2005;7:277-284.
Endereço para correspondência:
Sidney Roberto Nadal
Rua Dr. Virgilio de Carvalho Pinto, 381 Apto. 23
05.415-030 - São Paulo (SP) Brasil
Tel./Fax (+55 11) 3337-4282
E-mail: srnadal@terra.com.br
Recebido em 06/12/2006
Aceito para publicação em 11/12/2006
Trabalho realizado pela Equipe Técnica de Proctologia do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e Liga de Coloproctologia da Faculdade
de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.